Pirei a canga em Piracanga

Camila Felix
Revista Passaporte
Published in
8 min readMar 6, 2018

Como foram os 10 dias que passei nesta ecovila na Bahia.

Instituto Inkiri Piracanga.

Depois que virei nômade, passei por poucas e boas durante alguns meses de adaptação neste novo estilo de vida. Mas, a melhor parte foi me livrar do peso extra — me desapegando ainda mais — e descobrir que eu posso viver em qualquer lugar além do eixo RJ-SP. Foi assim que peguei o pouco dinheiro que tinha no banco, fiz as malas e fui para a Bahia passar o verão, claro.

No dia 16 de janeiro fui para Salvador. Como nunca tinha ido lá antes, fiz tudo que todo turista faz nas horas que tirei de folga. Passei 21 dias morando na Barra perto da praia, trabalhando, turistando e comendo muito dendê, de boas. Peguei o pré-carnaval, fui no bloquinho e me diverti a valer. Mas, sentia no fundo do meu coração que eu tinha que sair de lá antes do carnaval.

Eu queria ficar pensando na vida, bem sossegada, em alguma praia paradisíaca tomando água de côco com meu boy. Procurei no Airbnb os possíveis lugares: Algodões, Morro de São Paulo, Itacaré, Moreré… Tudo caríssimo e poucos lugares disponíveis. Perguntei para amigos e nada. Até que um dia surgiu: Piracanga.

O boy me encontrou em Salvador e embarcamos nessa aventura sem saber direito o que nos aguardava.

Saímos no dia 6 de fevereiro de Salvador, no Ferry Boat das 10:30 da manhã. Chegamos em Bom Despacho (Itaparica) às 11:30. Perdemos o ônibus para Itacaré das 11h e o próximo era só às 15:30h. Legal, abri uma cerveja e comecei a esperar.

O ônibus dá tanta volta e para tantas vezes, que parece que a viagem não vai terminar nunca.

Chegamos em Itacaré 20:30 da noite e não rolava mais sair de lá nem a pé, nem de carro, nem de barco. Na rodoviária, um guia nos indicou um quarto para dormir no melhor estilo baratex. Nunca vou esquecer que o chão das nossas acomodações era bem inclinado, uma construção free style.

Acordamos bem cedo no dia seguinte e, com a casa nas costas, decidimos ir andando até a ecovila. O transporte é bem caro (R$50,00 por pessoa) e a distância não é tão grande. (É legal pesquisar a maré antes, se estiver cheia não rola). Atravessamos o rio de barco super rapidinho e começamos a andar pela areia na beira do mar.

Foi lindo e nunca pensei que conseguiria andar durante 2 horas e meia carregando tanto peso. O tempo estava bem fechado e pegamos chuva em vários momentos. Mas, apesar das condições climáticas e do peso que estava carregando, eu estava feliz.

Camila brincando de ser caramujo.

Confesso que foi a melhor maneira de chegar em Piracanga, porque durante o caminho dá tempo de deixar muita coisa para trás, limpar a mente de alguns pensamentos, entrar em contato com a natureza, diminuir a frequência e sentir a energia maravilhosa do lugar!

Alguns esclarecimentos sobre Piracanga

Quando decidimos passar o carnaval lá, não tínhamos a menor noção do que era Piracanga. Fomos seduzidos pelas imagens, preços e pela ideia de conhecer uma ecovila.

Reservamos uma cabana no Airbnb e, logo no dia seguinte, o anfitrião me ligou para saber se a gente conhecia Piracanga. Eu disse que conhecia uma ou duas pessoas que já tinham ido e que não conhecia o lugar. De cara fomos alertados que não se pode consumir nada que altere a consciência, como café, álcool e drogas, na ecovila. O anfitrião também avisou que lá a dieta é vegana, mas poderíamos levar queijo e manteiga que ele emprestaria a geladeira pra gente guardar as coisas.

Engoli a seco, pois nunca pensei que passaria o CARNAVAL dentro desse tipo de REGIME. Porém, a curiosidade aumentou.

Uma das cabanas Olho D'água.

Também fomos orientados a não usar qualquer tipo de produto industrializado, pois a água em Piracanga é tratada como joia. Pode esquecer seu sabonete com hidratante, shampoos e condicionadores cheios de derivados do petróleo (na real pode esquecer pra vida, tá?!), sua pasta de dente extra-super-white, desodorante aerosol com cheirinho, protetor solar anti-rugas fps 50, repelente que funciona de verdade… tudo.

Todos os produtos devem ser 100% biodegradáveis.

Assim que colocamos os pés na ecovila, nos dirigimos à lojinha de produtos naturais que tem no Centro Inkiri. Tudo é produzido lá: sabonetes, repelente, pasta de dente, desodorante, shampoo, hidratante, protetor solar (fps 20) e outros produtinhos naturais. De cara, gastamos uma bela quantia em dinheiro e recebemos troco em Inkiri (moeda local). Sim, Piracanga possui sua própria moeda.

Como ainda tínhamos trabalho a fazer antes do carnaval, ter internet boa era uma questão que logo foi resolvida. Por 20 Inkiris, contratamos a internet local e conseguimos trabalhar. Nos surpreendemos com a qualidade e com a disponibilidade de um co-working com uma vista pra lá de agradável. Isso é possível graças a quantidade de gente que mora lá e trabalha na internet. Gente de qualquer lugar do mundo que chega em Piracanga, se apaixona pelo lugar e fica por tempo indeterminado.

Alojamentos no Centro Inkiri.

Quem vai a Piracanga não chega lá porque viu um anúncio no Facebook, ou porque recebeu um email com pacote turístico em promoção. De alguma forma, todo mundo que chega lá foi atraído espiritualmente. Todas as pessoas em Piracanga estão trabalhando sua espiritualidade dentro da energia e da proposta oferecida pelo centro holístico. A maioria fica hospedada dentro do Instituto Inkiri e faz cursos de imersão espiritual voltados para o auto-conhecimento. Quem está no comando é Sri Prem Baba.

Outra novidade, pois nunca tinha escutado falar nesse nome. Não entendi porque havia uma foto de um senhor com barba e cabelos longos e brancos em TODOS os lugares. Fiquei sabendo que ele chegou lá por volta de 2015, alguns anos depois da fundação da ecovila e do Centro Inkiri por Angelina Ataíde.

A alimentação é bem rica e saudável. Além do restaurante do centro, tem uma lanchonete e uma lojinha que abre todas as tardes com lanchinhos veganos e comidas vivas. No lugar que ficamos, havia uma cozinha compartilhada e levamos algumas coisas básicas, queijos, manteiga e café. Como a gente não tinha muito dinheiro, acabamos cozinhando bastante por lá, tem feira três vezes por semana e deu pra comer legal. No restaurante do Centro a comida é bem gostosa, paga-se $25 Inkiris e come-se a vontade com direito a sucos e sobremesa. Na ecovila tem uma cozinha compartilhada onde custa $15 Reais ou Inkiris e também é bem gostoso, só não tem sucos e sobremesa. Todas as refeições são servidas com hora marcada, é necessário avisar antes.

Centro de permacultura.

Minhas considerações sobre Piracanga

Embora tenha sentido um comportamento infantil e hostil do pessoal que trabalha no Centro Inkiri em relação a galera que fica hospedada na ecovila, e que eu não tenha participado das terapias que eles oferecem lá — pois, já tenho meu caminho espiritual definido — achei a experiência bastante válida.

Viver de verdade integrada na natureza, me fez refletir sobre o meu comportamento de consumo e na minha relação com o meu corpo. A imersão que a ecovila nos oferece e a vivência em outro tipo de modelo social é bastante rica. Todo dia uma reflexão diferente surge, debates acontecem e novas conclusões sobre o mundo emergem.

Entendi que a ausência de produtos industrializados com perfume nos leva a níveis extremos de autoconhecimento. Comecei a conhecer os cheiros naturais do meu corpo e descobri que eles não são desagradáveis (pasmem!). A minha pele ficou maravilhosa e não tive rinite ou bronquite um só dia.

Pela primeira vez tive contato com um banheiro seco e tive também a oportunidade de conhecer o meu cocô na forma que ele chega na natureza para virar adubo. Foi maravilhosamente primitivo poder enterrar meu próprio cocô e ter esse contato sem nojinhos, aceitando que aquilo é parte de mim. Xixi na natureza é liberado e sem multas.

No alto, banheiros secos. Banheiros molhados apenas para fazer xixi.

Entendi na prática o que é consumo consciente. A energia é solar, a água é uma riqueza pura e a comida é um ser vivo como a gente. Consumir conscientemente é ter respeito por todas as coisas que a natureza nos dá. É agradecer por poder dividir e usufruir de tudo isso sem desperdício, sem abuso. É ter amor por tudos os recursos que chegam pra gente com tanta abundância.

Em Piracanga as casas são abertas e não tem animais de estimação, porém temos uma fauna riquíssima de animais que interagem com a gente o tempo todo e em qualquer lugar. Poder conviver sem medo com aranhas, lagartos, carangueijos, micos, siris, formigas, mosquitos, abelhas, pássaros e a lista não termina; me fazendo repensar que tipo de mundo é esse que tem aqui fora, onde as pessoas exterminam qualquer ser vivo que se transforma em grande ameaça do dia para a noite. Lá, todo mundo é igual e todo mundo vive junto. Todo mundo é natureza.

O sorriso do lagarto.

Não foi a toa que Angelina escolheu aquele lugar para fundar um centro holístico. A energia que está concentrada lá é algo que nunca havia encontrado antes. Não adianta tentar explicar, pois cada um sente da sua maneira. Quem chega pesado, passa por uma limpeza espontânea. Quem chega leve, sai de lá flutuando. Quem sente mais, se aprofunda nessa energia e usa para se renovar. Quem sente menos, aproveita para se conhecer melhor. O que quero dizer, é que lá tem uma energia transformadora e é impossível sair de Piracanga da mesma forma que se chegou. Depois de 10 dias lá, é impossível voltar para a cidade e viver como eu vivia antes.

Pirei a canga, pois fui no melhor estilo livre. Não entrei no regime imposto aos hóspedes do Centro Inkiri. Mas, respeitei as regras de não beber. Fumei (coisas que a natureza dá, cigarro não) na praia, no coqueiral, na beira do rio — nesses lugares é permitido e não tem nada a ver mesmo fumar qualquer tipo de coisa dentro da ecovila. Não senti falta do álcool e isso foi transformador para mim. Dormia às 9 da noite e acordava às 5 da manhã com a luz do sol entrando pelas frestas dos bambus da cabana. Pude refletir com clareza sobre as minhas missões nesse mundo, sobre o que eu preciso fazer para essa merda de mundo ser um pouco melhor para mim e para o ambiente que vivo. Consegui enxergar que micro-revoluções são possíveis e urgentes. E, agora tenho que concordar com Prem Baba, isso só vem com muito amor (próprio) e autoconhecimento.

Vista da praia, a ecovila totalmente camuflada na natureza.
Cozinha compartilhada das cabanas Olho D'água.
Natureza sendo natureza.
Casa na ecovila.
Rio que passa em frente ao mar.
Quando o rio encontra o mar.

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