Poesias, Capixabas, Nobel, Neruda, Pandemia

Tiago da Silva
Revista Passaporte
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4 min readMay 27, 2021

Em março de 2020, quando ainda era permitido e seguro viajar com dignidade, fui conhecer o estado do Espírito Santo. Em Vitória, fiz o que faço em todas as capitais e cidades satélite que conheço, entrei naquela livraria com cara boa do Centro — aquela que tem cafeteria dentro, sabe, a melhorzinha aquela? — e disse com ar solene ao atendente:

_ Meu bom homem, mostre-me o estande dos autores locais.

Ao que o atendente me respondeu:

_ Rapaz, não temos isso, não.

_ Qualquer autor capixaba me serve, amigo.

_ Não saberia te dizer nada.

_ Sério?

_ Espera. Tem um aqui…

E me levou até uma área de onde tirou e me entregou alguma coisa de autoajuda financeira(?) de um coach(!) supostamente célebre.

Não devo ter sido capaz de disfarçar a expressão de quem percebeu que pisou no cocô de um cachorro doente.

_ Não era isso que você queria, né?

_ Não.

O que levar, agora?

Peguei Macunaíma, que já cobiçava há muito — e que li antes do fim daquela viagem. Mas me faltava algo ainda…

Resolvi pegar algo atemporal e célebre em qualquer canto da Terra. Algo premiado, de um Nobel, um poeta…

Não sabia que Neruda existia até ouvir um diálogo de Diários de Motocicleta anos antes. A sonoridade de seu nome e o fato de ser latino plantaram em mim uma curiosidade sobre sua obra.

Em um estande de poesia, encontrei a resposta para o dilema que me consumia. Acabei comprando 100 sonetos de amor, de Pablo Neruda.

Ele ficou parado em alguma gaveta até dezembro de 2020 e, no dia 1º de janeiro desde ano (2021) li, pela manhã, um de seus poemas. E fiz disso um hábito.

Poesia não é coisa de se ler às pencas, uma atrás da outra, há que se destinar um tempo para digeri-las. Ler uma por dia pareceu muito adequado, e , aliás, um hábito que pretendo cultivar até o final de minha caminhada terrestre — só não escolhi ainda a próxima coletânea, e aceito sugestões.

Hoje, meados de abril, tendo lido um poema por dia a cada manhã (salvo raras exceções), estou concluindo a obra. Fui lendo e atribuindo estrelas ao que lia diariamente. Olhe bem isso: eu fazendo julgamentos sobre a obra de um Nobel de Literatura, mas tudo bem.

Pretendia elencar abaixo a transcrição dos 10 poemas que mais me agradaram, seja pela forma, temática ou visão do autor. Talvez você, leitor, pudesse gostar como eu gostei.

Mas ocorre que, a bem da verdade, comecei a escrever esse texto em abril com a intenção de publicá-lo em seguida, mas agora estou já em fins de maio e nada de surgir tempo ou energia para digitar tantos poemas, de modo que terá de se contentar com apenas dois ou três. Muito mal formatados, por mim, aliás.

Note que não são nem necessariamente os melhores, ou melhores rankeados. São apenas os primeiros que apareceram no livro com um número razoável de estrelinhas da minha humilde avaliação. Os digitei quando havia energia para a tarefa.

Não repare as lacunas que a dislexia e a preguiça possam ter deixado. O autor e a obra mereciam mais atenção, mas os tempos são sombrios e a poesia não recebe mesmo a atenção de deveria.

Seguimos:

NOS BOSQUES, perdido, cortei um ramo escuro

e aos lábios, sedento, levantei seu sussurro:

era talvez a voz da chuva chorando.

Algo que de tão longe parecia

oculto gravemente, coberto pela terra,

um grito ensurdecido por imensos outonos,

pela entreaberta e úmida escuridão das folhas

Por ali, despertando dos sonhos do bosque,

o ramo de avelã cantou sob minha boca

e seu vagante olor subiu por meu critério

como se me buscassem de repente as raízes

que abandonei, a terra perdida com minha infância,

e me detive ferido pelo aroma errante.

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TENHO fome de tua boca, de tua voz, de teu pelo

e pelas ruas vou nutrir-me, calado,

não me sustenta o pão, a aurora me desequilibra,

busco o som líquido de teus pés no dia.

Estou faminto de teu riso resvalado,

de tuas mãos cor de furioso celeiro,

tenho fome da pálida pedra de tuas unhas,

quero comer tua pele como uma intacta amêndoa.

Quero comer o raio queimado em tua beleza,

o nariz soberano no arrogante rosto,

quero comer a sombra fugaz de tuas pestanas

E faminto venho e vou olfateando o crepúsculo

buscando-te, buscando teu oração ardente

como um puma na solidão de Quitratúe.

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NÃO TE AMO como se fosses rosa de sal, topázio

ou flecha de cravos que propagam o fogo:

te amo como se amam certas coisas obscuras,

secretamente, entre a sombra e a lama.

Te amo como a planta que não floresce e leva

dentro de si, oculta, a luz daquelas flores,

e graças a teu amor vive escuro em meu corpo

o apertado aroma que ascendeu da terra.

Te amo sem saber como, nem quando, nem onde,

te amo diretamente sem problemas nem orgulhos:

assim te amo porque não sei amar de outra maneira,

senão assim deste modo em que não sou nem és

tão perto que tua mão sobre meu peito é minha

tão perto que se fecham teus olhos com meu sonho.

uma das casas do velho chileno

Se você gostou do texto, dê a ele de 1 a 50 aplausos clicando nas mãozinhas no final do texto ou ao lado dele. Quanto mais aplausos, mais as histórias se destacam.

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Tiago da Silva
Revista Passaporte

Às vezes me surpreendo com o que escrevo, porque não sabia que pensava assim.