Bento Viana para o G1 SC

Por que pescar tainha me ensinou mais sobre gente do que sobre pesca artesanal

Nessa Rodrigues
Revista Passaporte
6 min readApr 3, 2018

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Se você, assim como eu, também vive mais na internet do que gostaria, arrisco o palpite de que nunca pensou em pescar no mar aberto. Muito menos pescar tainha. Menos ainda pesca artesanal. Vou diminuir ainda mais a possibilidade chutando que você nunca pensou em pescar tainha, na alta temporada da pesca artesanal, num bairro do sul de Florianópolis com um bando de antigos pescadores e outro bando de desconhecidos. Eu também não.

Mas agora, se você já pensou em viver isso, favor mandar uma mensagem. Caso não, segue o fluxo.

Confesso que até o fatídico maio de 2017 eu não havia cogitado de maneira nenhuma participar de qualquer coisa que envolvesse peixes ou redes de pesca na vida. Porém, sou do time que acredita ter uma sorte inexplicável em poder participar de boas histórias. E esse dia foi uma dessas sortes.

Ah, mas se organizar direitinho todo mundo pode participar de uma pescaria.

Pode. Claro que sim. Imagino até que existam pacotes de turismo voltados especificamente para isso. Mas não foi meu caso. Em resumo, o plano era até simples:

  1. Enfrentar os 3 ônibus entre o bairro que eu moro e a praia sob a música dos resmungos de uma criança de então 8 anos;
  2. Conhecer a praia;
  3. Molhar os pés;
  4. Tomar um suquinho;
  5. Voltar enfrentando os mesmos kids-resmungos endossados pelo cansaço em mais uma longa viagem.

Como você pode adivinhar, não foi bem isso que aconteceu.

Expectativa vs realidade

  1. Três ônibus com poucas perdas de bom humor no caminho: CHECK!
  2. Conhecer a praia: CHECK!
  3. Molhar os pés.

Mas aí, entre tomar o suquinho e voltar é que a coisa degringolou.

Dizem que a curiosidade nos leva para lugares tão curiosos — e grandiosos — quanto ela própria. Naquele escaldante sol do meio-dia, comecei a ver uma movimentação estranha na areia. Eram senhores de cabelos brancos e passos firmes na praia. O topor de ver os senhorezinhos só foi quebrado pelo “vambora mãe”. Mas a curiosidade foi maior e pedi gentilmente que meu filho esperasse um pouquinho pra ver o que aqueles inúmeros senhores que passavam a casa dos 60 estavam fazendo. Depois de uns 10 “anda logo, mãe”, me dei conta de que eles estavam pescando! Sim, era a alta temporada de tainhas e a temporada específica para pesca artesanal.

Meu deus, eles estão mesmo pescando.

Comentei abismada com a cara de quem nunca tinha visto uma pesca no mar. De fato, eu nunca tinha visto. De repente, aqueles velhinhos se aproximaram de um barco pequeno e carregando uma (enorme) rede entraram no mar. Antes mesmo que eu pudesse achar um ângulo perfeito para a foto, já estavam eles saindo e um grupo de outras pessoas se alinhavam perto de uma corda que estava saindo do mar.

Filho, é a rede!! — disse eu abismada

Meu filho, mais perplexo por eu não ter entendido antes o porquê do que pela rede, não esboçou muita reação e só soltou a pergunta que ia mudar a minha tarde:

Será que eu posso ajudar a puxar a rede também?

Como eu faço a linha materna do “vai lá e descobre”, ele foi lá e descobriu. Pisquei e o guri já estava puxando uma rede junto com meia dúzia de gente. Fiquei um pouco ali, meio sem saber o que fazer, meio de guarda-roupas para um monte de casaco que eu estava segurando e, ao mesmo tempo, perdida no tempo vendo a força com que aquelas pessoas — entre elas algumas crianças, faziam para alinhar aquela rede que começava a entrar no mar.

O barco já voltava fazendo um U entre o mar e a areia. Aos poucos, aqueles pequenos senhores se misturavam e se dividiam pra começar a puxar a rede. Meu filho e meu companheiro lá, puxando a bendita rede e eu de guarda-roupas.

Aos poucos, as pessoas — muitas delas banhistas que estavam ali na praia, avançavam cada vez mais com a rede em direção à areia da praia. Quando chegaram perto de mim, esqueci do filho e só pude me ver jogando os casacos na areia e me juntando no esforço de tirar a rede do mar.

A torcida por uma boa pesca começava a tomar conta de todo mundo. Dava para ver algumas poucas tainhas pulando na rede. Enquanto Seu Pedro, pescador há 60 anos, e eu desenrolávamos a rede, ele me explicava como aquele tinha sido o ofício da família há mais de 4 gerações. O neto não estava ali porque estava estudando, fazia Biologia na Federal. Mas a filha estava.

Ali, entre correr e pular a rede gigantesca que tomava conta de uma boa parte da areia da praia, olhar para o mar e tentar ajudar a desenroscar a rede para deixá-la pronta para ser puxada novamente, Seu Pedro cantarolava, gritava para outros pescadores e dizia pra quem quisesse ouvir que se não puxar com convicção, a tainha puxa de volta e vai embora. Em tom baixo, ainda do meu lado ele disse:

Não vai dar tainha hoje, mas a gente segue puxando a rede mesmo assim.
Na vida, minha querida, precisa ter convicção pra tudo. Nem que seja pra puxar rede vazia.

Seu Pedro tinha razão, a rede voltou com duas tainhas e um caranguejo. As tainhas talvez tenham sidos as mesmas vimos pular no mar. Cansados, alguns banhistas desistiam e esse movimento de desistência me fez perguntar se o Seu Pedro não se incomodava com isso. Risonho, ele me respondeu rápido num sotaque manezinho raiz:

A única foto que eu consegui horas depois de pescar duas tainhas

Eles estavam aqui, minha estimada. Como tu estais agora. O que é bonito de ver é que ajudar faz parte da gente, mesmo que a gente não perceba. E do mesmo jeito que tu e eles estão aqui agora, outra pessoa vai estar depois. A gente às vezes saí em dois pra pescar. E quando vê, são 50. Isso é assim. E é assim por que a vida pede vida e não tem lugar com mais vida do que na frente do mar.

Na intimidade de quem se conheceu há 30 minutos, perguntei se ele não estava triste por não ter dado peixe naquela rede dessa vez. E o hino que Seu Pedro me respondeu?

Não é só ter peixe. Se a gente cuidar do mar, o mar cuida da gente. Daí o peixe vem. Eu não fico triste não. Eu fico é feliz por que eu tenho 68 anos e pesco há 60. Agora vai lá descansar estimadinha, come um peixinho frito ali no João, diz que o Pedro da esquina indicou por que é hora de dar espaço pro mar cuidar da gente.

Saí com os olhos marejados, feliz e procurando a criança perdida na rede. Naquele dia eu aprendi pouco a fazer arrastão na praia, mas aprendi muito sobre a importância de ter convicção.

Sobre a pesca de tainha artesanal e industrial no Sul do Brasil, você pode ter mais informações através do Tainhômetro, uma iniciativa das associações de pescadores de Santa Catarina em parceria com a Oceana, uma das maiores organizações internacionais focada exclusivamente na conservação dos oceanos, para evitar a sobrepesca.

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Nessa Rodrigues
Revista Passaporte

Passionate for Branding | Business Strategist | Design Thinker | Como mais do que eu devo, escrevo menos do que eu quero. ❤