̶ E agora? Esquerda ou direita?
Saíamos, Odete e eu, da estação Asakusa, onde desembarcamos do trem tomado no aeroporto de Tóquio. Seriam umas 20:30. Sabíamos que o hotel ficava a uns 700 metros, mas… para que lado? Não contávamos com o GoogleMaps, pois estávamos “off-line” — só no hotel, receberíamos o encomendado “kit” de Wi-fi.
Recorremos a um moço de terno e gravata que passava ali. Pelo celular, ele logo descobriu o caminho e, não contente de indicar a direção, foi nos acompanhando. Percorreu o trajeto inteiro, só se dando por satisfeito ao nos deixar diante do hotel.
Recém-chegados ao Japão, éramos ali apresentados à refinada cortesia do seu povo. Nas semanas seguintes, receberíamos incontáveis gentilezas.
Nossa viagem andava encantada desde 2020, quando a pandemia nos surpreendeu de malas prontas. O governo japonês foi dos últimos a reabrir as portas.
Terminamos dando sorte: nossos dias por lá coincidiram com a floração das cerejeiras, que neste ano se adiantou. Nos parques, logo encontramos os que a contemplavam e fotografavam, festejando seu reaparecimento ao final do inverno. Durante toda a viagem, veríamos cerejeiras na paisagem urbana. A maioria, com flores rosadas, mas também havia as brancas; nas árvores, formas variadas, até mesmo chorões. Em sua autobiografia, o cineasta Akira Kurosawa assim se refere a um amigo: “Nós dois somos cerejeiras do mesmo tipo”.
Fizemos nosso percurso na região central: Tóquio, Takayama, Kanazawa, Quioto, Hiroshima, as ilhas de Naoshima e Miyajima, e finalmente Osaka; e, no “bate-e-volta”, mais outras cidades. Utilizamos os trens da Japan Rail, com passes comprados ainda no Brasil. Algumas vezes, o famoso trem-bala, o “shinkansen”; ou então, trens menos velozes, mas pontuais e confortáveis.
Em 1853, quando coagiram o Japão a abrir seus portos, o Comandante Perry e os “marines” americanos levaram a miniatura de uma linha férrea com um trenzinho, maravilha da época. Queriam contar vantagem, mostrando-se avançados. Os japoneses gostaram tanto do brinquedo que hoje têm liderança mundial na tecnologia ferroviária. Deixaram os americanos para trás.
Viajamos por conta própria, sem grupos nem guias. No início, temi perder-me nas gigantescas estações de trem e metrô. Nenhum problema: estações bem sinalizadas, com equipes prontas a prestar informações. Diz o provérbio japonês: “Se você pergunta, sentirá vergonha por um minuto; se não pergunta, vergonha pela vida inteira”. E quem tem boca, vai a Tóquio.
Na área metropolitana, Tóquio tem quase 40 milhões de habitantes — a maior aglomeração urbana do planeta. Uma amostra é a Estação Shinjuku do metrô, a mais movimentada do mundo: oito andares, 3,4 milhões de passageiros diários.
Outro marco é o cruzamento de Shibuya: ao sinal verde, uma inundação de pedestres atravessa para cá e para lá — ordenadamente, sem esbarrões. Para fotos, o melhor ângulo seriam as janelas do Starbucks, num prédio vizinho — só que a comprida fila de espera nos desanimou.
Mas não é cidade barulhenta — nos ônibus, há um aviso para os passageiros não falarem ao celular. E ruas limpíssimas, como também as de outras cidades japonesas.
Em Tóquio, circulamos por “shopping centers” e também nas ruas Omotesando, das lojas de “griffe”, e Takeshita-dori, de moda alternativa (meio doidona). Não longe dali, casas de madeira contrastam com a modernidade.
Especialmente prazeroso foi flanar nos parques, desfrutando magníficos cenários. Ou visitar templos budistas e santuários xintoístas — muito presentes no Japão, mais do que imaginávamos.
Foram proveitosas as visitas a museus. Destaque para o Museu Nacional de Tóquio, com rico acervo da cultura artesanal. Estivemos também no dedicado ao artista plástico Katsushika Hokusai (1760–1849) e no Nezu, de arte japonesa, em belo prédio de arquitetura moderna e com caprichadíssimos jardins.
Durante a estadia em Tóquio, demos um pulo em Hakone, perto do Monte Fuji. Muitos viajantes pernoitam ali, curtindo a paisagem em torno do lago — esquema preferível ao nosso: com ida e volta num dia só, enfrentamos demoras nas sucessivas filas. O que realmente nos agradou foi o Museu A Céu Aberto, de esculturas modernas e instalações para a criançada.
De Tóquio partimos para Takayama, na encosta dos “Alpes Japoneses”, com picos nevados no horizonte. Celebrada pelas águas termais — curtimos um “ofuro” ao ar livre — , a cidade preserva, no antigo centro, casas no estilo tradicional, de madeira escura.
De Takayama, fizemos rápido passeio a Shirakawa-go, pitoresco vilarejo rural que está nos patrimônios mundiais da UNESCO. Suas casas são de estilo “gassho-zukuri” (literalmente, “mãos postas em oração”), referência à forma dos telhados, projetados para suportar a neve. Feitos de palha do arroz cultivado ali mesmo, eles precisam ser substituídos a cada 20 a 30 anos — então, os moradores organizam mutirões.
Kanazawa, a cidade seguinte, superou nossas expectativas. Com apenas 400 mil habitantes, tem eficiente transporte público, belos parques e templos, além de ótimo e gratuito museu de arte contemporânea.
Foi gratificante o passeio no Kenroku-en, palavra que significa “Jardim das Seis Sublimidades”. Pela teoria paisagística chinesa, elas são: espaço, reclusão, antiguidade, água abundante, vistas amplas e artificialidade — ou seja, o trabalho da jardinagem. Esplêndido parque.
Na sequência, passamos cinco dias em Quioto, que foi capital japonesa por mais de mil anos. Ao fundar a cidade no ano 794, o imperador Kanmu, seguindo teorias da época, quis situá-la num amplo vale cercado por colinas arborizadas e com rios cascateantes a leste e oeste.
Apelidam-na “cidade dos mil templos”. Visitamos alguns deles, invariavelmente tirando os calçados. Muito bonitos — mas nem todos com o silêncio e paz que desejaríamos, tal o afluxo de visitantes. Numa cidade marcadamente turística, onde quer que fôssemos, topávamos com muita gente que tivera ideia igual.
O antigo palácio imperial de Quioto estava fechado à visitação. Demos, porém, uma espairecida no vasto e aprazível parque adjacente. Próximo do centro da cidade, é uma preciosa área verde para o lazer dos moradores.
A poucas quadras, situa-se outro símbolo do antigo poder, o castelo do xogum, que era quem realmente mandava. No início do século XVII, após vencer seus rivais, o xogum Tokugawa Ieyasu obrigou-os a construí-lo para ele. O prédio principal é uma instalação térrea, onde se sucedem salas de requintada decoração. Para visitá-las, tivemos de nos acotovelar numa densa procissão turística, impossibilitados de escutar os famosos “assoalhos de rouxinol”: feitos para revelar a presença de intrusos, ressoariam ao mais leve passo.
Morador de Quioto, o filósofo Kitaro Nishida (1870–1945) costumava meditar à beira de um riacho, numa trilha com cerejeiras. Nascia assim “O Caminho do Filósofo”. Fomos, também nós, percorrê-lo, sonhando captar inspirações metafísicas. Faltavam, porém, condições para dar asas à ave de Minerva, tamanha a muvuca dos transeuntes. Ali, mais se fotografava do que filosofava.
O “Caminho” termina no Ginkaku-ji, templo também denominado “pavilhão prateado”. Uma característica sua são os “jardins lunares”, modelados com areia e pedrinhas, o que simboliza a transitoriedade do mundo.
Em Quioto, existe também o “pavilhão dourado”, ou Kinkaku-ji. Cada andar desse templo tem estilo arquitetônico próprio, e os dois últimos pisos são revestidos de folhas de ouro. Seu interior não estava aberto para visitas, e limitamo-nos a apreciar o cenário.
Em nossa breve passagem por Hiroshima, etapa seguinte, contemplamos a Cúpula da Bomba Atômica, eloquente marco da destruição sofrida em 6/8/1945. Com pressão de 6 a 10 toneladas por metro quadrado, a explosão nuclear arrasou 62 mil prédios, dos 90 mil existentes; outros 6 mil restaram irrecuperáveis. Dos 245 mil habitantes, 100 mil morreram imediatamente; outros 100 mil, feridos com maior ou menor gravidade. E como prestar socorro? De 150 médicos, 65 morreram, e a maioria dos demais estava ferida; de 1.780 enfermeiras, só 126 ficaram de pé.
No local da Cúpula, a prefeitura tinha um centro de exposições. A explosão teve seu epicentro quase exatamente sobre o prédio, a 600 m de altura, matando os que estavam dentro. Das edificações da área, só aquela não teve destruição total.
A Cúpula integra um conjunto que compreende o Parque Memorial da Paz e o bem montado museu do mesmo nome. Foi com tristeza que visitamos esse museu, de histórias dolorosas, mas recapituladas com serenidade; e de relíquias: roupas rasgadas de vítimas (notadamente crianças), marmitas calcinadas, um relógio que parou no instante do ataque, a sombra de um homem que permaneceu marcada no degrau onde ele estava sentado…
A instalação de monumentos rememorando a tragédia precisou superar resistências. No pós-guerra, o General MacArthur, comandante da ocupação americana, proibira a divulgação de consequências das explosões nucleares, e as autoridades japonesas por algum tempo temeram complicações. Mas a opinião pública acabou prevalecendo.
De lá, fomos para Miyajima, ilha tida como sagrada por abrigar, há mais de 1.000 anos, o santuário xintoísta Itsukushima-jinja. Tendo pernoitado na ilha, tivemos vagar e tranquilidade para visitá-lo de manhã cedo, antes das invasões turísticas. Assentado em pilotis, o santuário, que ao longo dos séculos recebeu várias reformas, está à beira-mar; na maré alta, parece flutuar.
À sua entrada, e também aparentando flutuar na maré, está um “tori” de 16 m de altura, tornado ícone da ilha. Na tradição religiosa japonesa, “toris” simbolizam a conexão entre o terrestre e o celestial.
Viajamos depois para o porto de Uno, onde no dia seguinte embarcamos num “ferry” para passar o dia em Naoshima, “a ilha das artes”. Encontram-se lá manifestações artísticas ao ar livre e também museus de arte contemporânea, em prédios de apuro arquitetônico. Tudo emoldurado nas belezas naturais de Naoshima.
Até os anos 80, a ilha servia de depósito de resíduos industriais. A transformação, caracterizando Naoshima como espaço de arte de vanguarda, resultou de projeto liderado pelo prefeito e por um empresário.
Em Osaka, encerraríamos o périplo japonês. A caminho de lá, na baldeação em Okayama, depositamos as malas na estação e passeamos na bonita e bem equipada cidade. O ponto alto foi o Keroku-en, parque existente desde o século XVII, um dos mais encantadores do Japão.
Osaka é cidadona de quase três milhões de habitantes. Com as vizinhas Quioto e Kobe e imediações, forma uma aglomeração de 17 milhões. Quem desembarca na estação de trem já recebe uma amostra no bairro de Umeda, com arranha-céus e lojas de departamentos, todas elas com vastas áreas de alimentação.
Visitaríamos dois interessantíssimos museus. O de história da cidade está entre os melhores desse gênero que Odete e eu já conhecemos em nossas viagens. Para representar cenas urbanas, há diversas maquetes, com caprichados detalhes: até roupas penduradas no varal, ou o sujeito correndo por um guarda-sol que o vento arrebatara… Em sua história, Osaka destaca-se como uma das extremidades orientais da Rota da Seda e depois como importante polo industrial do Japão— seu metrô já conta 100 anos.
De dimensões menores, o outro museu aborda a habitação urbana e reproduz uma rua de Osaka há 200 anos. Lá estão o templo, os banhos públicos, a farmácia, a livraria, as lojas de tecidos, de brinquedos…
Com tanques distribuídos por oito andares de um prédio, o Aquário de Osaka faz um apanhado da fauna aquática do Oceano Pacífico e suas áreas costeiras. Tivemos duas horas instrutivas e agradáveis.
Deixando um pouco os parques, templos e museus, demos uma espiada no bairro de Namba, frequentado sobretudo por jovens, muitos com jeitão meio alternativo. Era sábado à noite, e foi divertido ver aquela diversidade. Nos jovens japoneses, porém, o caráter “outsider” se atém ao espaço da liberdade pessoal (cabelo, roupa etc.); em situações coletivas, como no metrô, eles observam as normas.
Ali, foi difícil arranjarmos lugar para comer - estavam todos lotados. Achamos finalmente uma “izakaya” — boteco de balcão-, onde nos serviram “yakitoris”, espetinhos de frango à moda local. Acompanhamos com saquê — segundo os japoneses, ele revela os reais sentimentos.
Às vésperas de viajar para o outono brasileiro, encerrávamos ali aquelas semanas floridas. Entre goles de saquê, cabia evocar o “hai-kai” de Matsuo Bashô (1644–1694):
“Lá se vai a primavera…
E gritam as aves; dos peixes,
As lágrimas sem fim.”
Brindamos, porém, a um possível retorno por lá. Conseguiremos? Talvez. Como dizem eles, “faça o que puder, deixe o resto para o destino”; e prosseguem: “o vento de amanhã soprará amanhã”.