Antonio Carlos Boa Nova
Revista Passaporte
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11 min readMay 4, 2023

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̶ E agora? Esquerda ou direita?

Saíamos, Odete e eu, da estação Asakusa, onde desembarcamos do trem tomado no aeroporto de Tóquio. Seriam umas 20:30. Sabíamos que o hotel ficava a uns 700 metros, mas… para que lado? Não contávamos com o GoogleMaps, pois estávamos “off-line” — só no hotel, receberíamos o encomendado “kit” de Wi-fi.

Recorremos a um moço de terno e gravata que passava ali. Pelo celular, ele logo descobriu o caminho e, não contente de indicar a direção, foi nos acompanhando. Percorreu o trajeto inteiro, só se dando por satisfeito ao nos deixar diante do hotel.

Recém-chegados ao Japão, éramos ali apresentados à refinada cortesia do seu povo. Nas semanas seguintes, receberíamos incontáveis gentilezas.

Nossa viagem andava encantada desde 2020, quando a pandemia nos surpreendeu de malas prontas. O governo japonês foi dos últimos a reabrir as portas.

Terminamos dando sorte: nossos dias por lá coincidiram com a floração das cerejeiras, que neste ano se adiantou. Nos parques, logo encontramos os que a contemplavam e fotografavam, festejando seu reaparecimento ao final do inverno. Durante toda a viagem, veríamos cerejeiras na paisagem urbana. A maioria, com flores rosadas, mas também havia as brancas; nas árvores, formas variadas, até mesmo chorões. Em sua autobiografia, o cineasta Akira Kurosawa assim se refere a um amigo: “Nós dois somos cerejeiras do mesmo tipo”.

Em Quioto, fotografando as belezas.
Na primeira noite da primavera, as margens do rio Sumida, em Tóquio, receberam iluminação festiva realçando as cerejeiras em flor.
À hora do almoço em Hiroshima, piqueniques à beira-rio, sombreados por cerejeiras.

Fizemos nosso percurso na região central: Tóquio, Takayama, Kanazawa, Quioto, Hiroshima, as ilhas de Naoshima e Miyajima, e finalmente Osaka; e, no “bate-e-volta”, mais outras cidades. Utilizamos os trens da Japan Rail, com passes comprados ainda no Brasil. Algumas vezes, o famoso trem-bala, o “shinkansen”; ou então, trens menos velozes, mas pontuais e confortáveis.

Em 1853, quando coagiram o Japão a abrir seus portos, o Comandante Perry e os “marines” americanos levaram a miniatura de uma linha férrea com um trenzinho, maravilha da época. Queriam contar vantagem, mostrando-se avançados. Os japoneses gostaram tanto do brinquedo que hoje têm liderança mundial na tecnologia ferroviária. Deixaram os americanos para trás.

Viajamos por conta própria, sem grupos nem guias. No início, temi perder-me nas gigantescas estações de trem e metrô. Nenhum problema: estações bem sinalizadas, com equipes prontas a prestar informações. Diz o provérbio japonês: “Se você pergunta, sentirá vergonha por um minuto; se não pergunta, vergonha pela vida inteira”. E quem tem boca, vai a Tóquio.

Na área metropolitana, Tóquio tem quase 40 milhões de habitantes — a maior aglomeração urbana do planeta. Uma amostra é a Estação Shinjuku do metrô, a mais movimentada do mundo: oito andares, 3,4 milhões de passageiros diários.

Outro marco é o cruzamento de Shibuya: ao sinal verde, uma inundação de pedestres atravessa para cá e para lá — ordenadamente, sem esbarrões. Para fotos, o melhor ângulo seriam as janelas do Starbucks, num prédio vizinho — só que a comprida fila de espera nos desanimou.

Mas não é cidade barulhenta — nos ônibus, há um aviso para os passageiros não falarem ao celular. E ruas limpíssimas, como também as de outras cidades japonesas.

Em Tóquio, circulamos por “shopping centers” e também nas ruas Omotesando, das lojas de “griffe”, e Takeshita-dori, de moda alternativa (meio doidona). Não longe dali, casas de madeira contrastam com a modernidade.

“Shopping” no centro de Tóquio.

Especialmente prazeroso foi flanar nos parques, desfrutando magníficos cenários. Ou visitar templos budistas e santuários xintoístas — muito presentes no Japão, mais do que imaginávamos.

Parque Rikougi-en (Tóquio).
Pagode no milenar templo Senso-ji, o mais famoso de Tóquio. Bombardeado na Segunda Guerra, foi reconstruído. Observe-se a limpeza do chão.
No parque adjacente ao rio Sumida, um charmoso templo budista. Sem turistas, apenas fieis devotos.

Foram proveitosas as visitas a museus. Destaque para o Museu Nacional de Tóquio, com rico acervo da cultura artesanal. Estivemos também no dedicado ao artista plástico Katsushika Hokusai (1760–1849) e no Nezu, de arte japonesa, em belo prédio de arquitetura moderna e com caprichadíssimos jardins.

Projetado pelo arquiteto Kazuyo Sejima, o prédio do Museu Hokusai impressiona pela elegância das linhas.

Durante a estadia em Tóquio, demos um pulo em Hakone, perto do Monte Fuji. Muitos viajantes pernoitam ali, curtindo a paisagem em torno do lago — esquema preferível ao nosso: com ida e volta num dia só, enfrentamos demoras nas sucessivas filas. O que realmente nos agradou foi o Museu A Céu Aberto, de esculturas modernas e instalações para a criançada.

No Museu A Céu Aberto.
Outra escultura no Museu A Céu Aberto.
No museu, as crianças pareciam divertir-se com certas figuras.

De Tóquio partimos para Takayama, na encosta dos “Alpes Japoneses”, com picos nevados no horizonte. Celebrada pelas águas termais — curtimos um “ofuro” ao ar livre — , a cidade preserva, no antigo centro, casas no estilo tradicional, de madeira escura.

Casa típica do centro antigo de Takayama.

De Takayama, fizemos rápido passeio a Shirakawa-go, pitoresco vilarejo rural que está nos patrimônios mundiais da UNESCO. Suas casas são de estilo “gassho-zukuri” (literalmente, “mãos postas em oração”), referência à forma dos telhados, projetados para suportar a neve. Feitos de palha do arroz cultivado ali mesmo, eles precisam ser substituídos a cada 20 a 30 anos — então, os moradores organizam mutirões.

Panorâmica de Shirakawa-go, em manhã enevoada.
Em Shirakawa-go, entramos em algumas casas. Mantido sempre aceso, o fogo afasta cupins e outros insetos — assim, o madeiramento de 200 anos mantém o estado original.

Kanazawa, a cidade seguinte, superou nossas expectativas. Com apenas 400 mil habitantes, tem eficiente transporte público, belos parques e templos, além de ótimo e gratuito museu de arte contemporânea.

Em Kanazawa, sala do Museu de Arte Contemporânea.

Foi gratificante o passeio no Kenroku-en, palavra que significa “Jardim das Seis Sublimidades”. Pela teoria paisagística chinesa, elas são: espaço, reclusão, antiguidade, água abundante, vistas amplas e artificialidade — ou seja, o trabalho da jardinagem. Esplêndido parque.

Recanto do Kenroku-en.
No Kenroku-en, trabalhos de jardinagem.
Na casa de chá existente no Kenroku-en, atenderam-nos com cerimonioso ritual.

Na sequência, passamos cinco dias em Quioto, que foi capital japonesa por mais de mil anos. Ao fundar a cidade no ano 794, o imperador Kanmu, seguindo teorias da época, quis situá-la num amplo vale cercado por colinas arborizadas e com rios cascateantes a leste e oeste.

Apelidam-na “cidade dos mil templos”. Visitamos alguns deles, invariavelmente tirando os calçados. Muito bonitos — mas nem todos com o silêncio e paz que desejaríamos, tal o afluxo de visitantes. Numa cidade marcadamente turística, onde quer que fôssemos, topávamos com muita gente que tivera ideia igual.

Erguido no século XIV e reconstruído no XIX, o templo Higashi Honjen-ji (Quioto) tem, no salão central, a maior estrutura de madeira do mundo.
O templo Nison-in data do século IX. Na entrada, um folheto ressalta que a paz ali reinante não é silêncio sem som: “o farfalhar das árvores, o canto dos pássaros e o marulho das águas convidam a reverenciar os milenares sons da natureza”.
Dominando uma colina, Kiyomizu-dera, o “templo da água pura”, oferece vista panorâmica de Quioto.
Painel no interior do Kennin-ji, o mais antigo templo Zen-budista de Quioto (século XIII).

O antigo palácio imperial de Quioto estava fechado à visitação. Demos, porém, uma espairecida no vasto e aprazível parque adjacente. Próximo do centro da cidade, é uma preciosa área verde para o lazer dos moradores.

Parque do Palácio Imperial.
No Parque do Palácio Imperial, o casal viajante.

A poucas quadras, situa-se outro símbolo do antigo poder, o castelo do xogum, que era quem realmente mandava. No início do século XVII, após vencer seus rivais, o xogum Tokugawa Ieyasu obrigou-os a construí-lo para ele. O prédio principal é uma instalação térrea, onde se sucedem salas de requintada decoração. Para visitá-las, tivemos de nos acotovelar numa densa procissão turística, impossibilitados de escutar os famosos “assoalhos de rouxinol”: feitos para revelar a presença de intrusos, ressoariam ao mais leve passo.

Em avenida vizinha do castelo, canal de águas cristalinas.
No jardim do castelo, também as ameixeiras floresciam.

Morador de Quioto, o filósofo Kitaro Nishida (1870–1945) costumava meditar à beira de um riacho, numa trilha com cerejeiras. Nascia assim “O Caminho do Filósofo”. Fomos, também nós, percorrê-lo, sonhando captar inspirações metafísicas. Faltavam, porém, condições para dar asas à ave de Minerva, tamanha a muvuca dos transeuntes. Ali, mais se fotografava do que filosofava.

Cenário no “Caminho do Filósofo”.

O “Caminho” termina no Ginkaku-ji, templo também denominado “pavilhão prateado”. Uma característica sua são os “jardins lunares”, modelados com areia e pedrinhas, o que simboliza a transitoriedade do mundo.

Jardim no Ginkaku-ji, “pavilhão prateado”.

Em Quioto, existe também o “pavilhão dourado”, ou Kinkaku-ji. Cada andar desse templo tem estilo arquitetônico próprio, e os dois últimos pisos são revestidos de folhas de ouro. Seu interior não estava aberto para visitas, e limitamo-nos a apreciar o cenário.

Kinkaku-ji, “pavilhão dourado”.

Em nossa breve passagem por Hiroshima, etapa seguinte, contemplamos a Cúpula da Bomba Atômica, eloquente marco da destruição sofrida em 6/8/1945. Com pressão de 6 a 10 toneladas por metro quadrado, a explosão nuclear arrasou 62 mil prédios, dos 90 mil existentes; outros 6 mil restaram irrecuperáveis. Dos 245 mil habitantes, 100 mil morreram imediatamente; outros 100 mil, feridos com maior ou menor gravidade. E como prestar socorro? De 150 médicos, 65 morreram, e a maioria dos demais estava ferida; de 1.780 enfermeiras, só 126 ficaram de pé.

No local da Cúpula, a prefeitura tinha um centro de exposições. A explosão teve seu epicentro quase exatamente sobre o prédio, a 600 m de altura, matando os que estavam dentro. Das edificações da área, só aquela não teve destruição total.

Cúpula da Bomba Atômica.

A Cúpula integra um conjunto que compreende o Parque Memorial da Paz e o bem montado museu do mesmo nome. Foi com tristeza que visitamos esse museu, de histórias dolorosas, mas recapituladas com serenidade; e de relíquias: roupas rasgadas de vítimas (notadamente crianças), marmitas calcinadas, um relógio que parou no instante do ataque, a sombra de um homem que permaneceu marcada no degrau onde ele estava sentado…

No centro do Parque Memorial da Paz, o cenotáfio contém os nomes das vítimas da bomba atômica que foram identificadas. Projetado pelo arquiteto Kenzo Tange, seu formato evoca as tumbas pré-históricas do Japão.

A instalação de monumentos rememorando a tragédia precisou superar resistências. No pós-guerra, o General MacArthur, comandante da ocupação americana, proibira a divulgação de consequências das explosões nucleares, e as autoridades japonesas por algum tempo temeram complicações. Mas a opinião pública acabou prevalecendo.

De lá, fomos para Miyajima, ilha tida como sagrada por abrigar, há mais de 1.000 anos, o santuário xintoísta Itsukushima-jinja. Tendo pernoitado na ilha, tivemos vagar e tranquilidade para visitá-lo de manhã cedo, antes das invasões turísticas. Assentado em pilotis, o santuário, que ao longo dos séculos recebeu várias reformas, está à beira-mar; na maré alta, parece flutuar.

À sua entrada, e também aparentando flutuar na maré, está um “tori” de 16 m de altura, tornado ícone da ilha. Na tradição religiosa japonesa, “toris” simbolizam a conexão entre o terrestre e o celestial.

Em Miyajima, o santuário Itsukushima-jinja.
O “tori” de Miyajima.

Viajamos depois para o porto de Uno, onde no dia seguinte embarcamos num “ferry” para passar o dia em Naoshima, “a ilha das artes”. Encontram-se lá manifestações artísticas ao ar livre e também museus de arte contemporânea, em prédios de apuro arquitetônico. Tudo emoldurado nas belezas naturais de Naoshima.

Até os anos 80, a ilha servia de depósito de resíduos industriais. A transformação, caracterizando Naoshima como espaço de arte de vanguarda, resultou de projeto liderado pelo prefeito e por um empresário.

Panorama de Naoshima.
Em Naoshima, instalação ao ar livre.
Abóbora gigante da escultora Yayoi Kusama. Original e inspirada, a artista teve recentes exposições no Brasil.
Na obra de arte, um “selfie” diferente.

Em Osaka, encerraríamos o périplo japonês. A caminho de lá, na baldeação em Okayama, depositamos as malas na estação e passeamos na bonita e bem equipada cidade. O ponto alto foi o Keroku-en, parque existente desde o século XVII, um dos mais encantadores do Japão.

Em Okayama, o Keroku-en.
Recanto do Keroku-en.

Osaka é cidadona de quase três milhões de habitantes. Com as vizinhas Quioto e Kobe e imediações, forma uma aglomeração de 17 milhões. Quem desembarca na estação de trem já recebe uma amostra no bairro de Umeda, com arranha-céus e lojas de departamentos, todas elas com vastas áreas de alimentação.

Osaka: uma das saídas da estação central.
Da janela do Museu de História, vista de Osaka em dia chuvoso, com destaque para o castelo, seus jardins e o fosso em volta.

Visitaríamos dois interessantíssimos museus. O de história da cidade está entre os melhores desse gênero que Odete e eu já conhecemos em nossas viagens. Para representar cenas urbanas, há diversas maquetes, com caprichados detalhes: até roupas penduradas no varal, ou o sujeito correndo por um guarda-sol que o vento arrebatara… Em sua história, Osaka destaca-se como uma das extremidades orientais da Rota da Seda e depois como importante polo industrial do Japão— seu metrô já conta 100 anos.

De dimensões menores, o outro museu aborda a habitação urbana e reproduz uma rua de Osaka há 200 anos. Lá estão o templo, os banhos públicos, a farmácia, a livraria, as lojas de tecidos, de brinquedos…

Maquetes no Museu de História.
No Museu da Vida Urbana, rua da antiga Osaka.

Com tanques distribuídos por oito andares de um prédio, o Aquário de Osaka faz um apanhado da fauna aquática do Oceano Pacífico e suas áreas costeiras. Tivemos duas horas instrutivas e agradáveis.

Moradores do Aquário.

Deixando um pouco os parques, templos e museus, demos uma espiada no bairro de Namba, frequentado sobretudo por jovens, muitos com jeitão meio alternativo. Era sábado à noite, e foi divertido ver aquela diversidade. Nos jovens japoneses, porém, o caráter “outsider” se atém ao espaço da liberdade pessoal (cabelo, roupa etc.); em situações coletivas, como no metrô, eles observam as normas.

No bairro de Namba, os embalos de sábado à noite…

Ali, foi difícil arranjarmos lugar para comer - estavam todos lotados. Achamos finalmente uma “izakaya” — boteco de balcão-, onde nos serviram “yakitoris”, espetinhos de frango à moda local. Acompanhamos com saquê — segundo os japoneses, ele revela os reais sentimentos.

Às vésperas de viajar para o outono brasileiro, encerrávamos ali aquelas semanas floridas. Entre goles de saquê, cabia evocar o “hai-kai” de Matsuo Bashô (1644–1694):

“Lá se vai a primavera…

E gritam as aves; dos peixes,

As lágrimas sem fim.”

Brindamos, porém, a um possível retorno por lá. Conseguiremos? Talvez. Como dizem eles, “faça o que puder, deixe o resto para o destino”; e prosseguem: “o vento de amanhã soprará amanhã”.

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Antonio Carlos Boa Nova
Revista Passaporte

Sociólogo. Autor do livro “Fora da Ordem: do claustro ao mundo secular”.