Proibida a entrada da polícia — San Juan Chamula, México

Filipe Mendonça
Revista Passaporte
Published in
5 min readOct 19, 2019
Igreja de São João Batista. Arquivo pessoal.

Eu estava de ressaca, com a cabeça apoiada contra a cortina que cobria a janela do ônibus da excursão em que eu estava, acordando de um cochilo intermitente. Enquanto eu tentava lembrar o que aconteceu no dia anterior e como eu havia conseguido entrar naquele ônibus a tempo, olhando através de uma fresta na cortina, eu vi uma placa na entrada da cidade “Bem vindo a San Juan Chamula. Proibida a entrada da polícia”.

Enxugo a baba e fecho a boca, olho a minha cara pela câmera do celular e vejo que o cabelo está quase arrumado. Apesar da parte da minha cara que estava apoiada na cortina estar toda vermelha e com as marcas do pano, ao menos eu tinha tomado banho e não estava cheirando a álcool e suor do dia anterior. Um problema a menos para eu me preocupar. Tinha apenas que entender o fato de estar chegando a uma cidade onde a polícia não podia entrar.

San Juan Chamula fica na província de Chiapas, no México, uma das mais pobres e naturalmente belas do país. Uma coisa importante sobre os mexicanos é que eles são muito apegados à sua cultura. Então, pouco a pouco o guia nos foi explicando que aquela cidade era dominada por uma tribo que havia resistido à colonização espanhola, mantendo vários dos seus costumes. Entre eles, estavam as suas próprias leis, algumas das quais se sobrepunham às leis do país. Por exemplo, eles cuidavam da sua própria segurança, a poligamia era permitida, assim como o sacrifício animal.

Descemos na praça principal da cidade, que fica em frente à Igreja de São João Batista. Tínhamos algum tempo para caminhar pelos arredores antes de nos reunirmos novamente por lá para entrarmos na igreja. Então, eu me juntei com uns amigos feitos na noite anterior, dois franceses e um espanhol, e resolvemos caminhar um pouco debaixo do Sol.

A cidade é bem pequena e, fora a igreja, não tínhamos muito para ver. Havia um cemitério meio estranho, sem muros e em meio a mato, como se tivesse saído de um filme. Além disso, era possível olhar os locais. Homens com casacos de lã brancos e pretos, eles quem cuidavam da segurança da cidade. Mulheres com saias negras feitas do mesmo material. Havíamos sido avisados que os chamulas (como são chamados os locais) são aversos a turistas. Por isso, era melhor não encarar ninguém e muito menos tirar fotos. Como não queríamos ser quatro estrangeiros tomando sopapos da “polícia” local (ou algo pior), resolvemos apenas evitar olhar para as pessoas e guardar os nossos celulares a maior parte do tempo.

Cemitério em San Juan Chamula. Arquivo pessoal.

Todos estávamos morrendo de ressaca e ainda tínhamos uns trinta minutos antes de voltar para a igreja. Então, acabamos decidindo que a melhor maneira de encarar aquilo era tomar uma cerveja extremamente gelada. Sentamos no primeiro bar que vimos e fomos tratar a nossa ressaca enquanto tentávamos reconstruir a noite anterior.

Aparentemente, fomos para uma boate e acabamos esticando a noite no hotel com algumas garrafas de diversas bebidas que guardávamos para situações de emergência. Por sorte, fora algumas pessoas vomitando, não houve nada demais. Ou, pelo menos, assim quisemos acreditar.

Após as primeiras cervejas, ainda restava um pouco de dor de cabeça e enjoo. Então, pedimos mais uma rodada e fomos, vagarosamente, caminhando em direção à igreja.

Chegando lá, o guia esperou todas as outras pessoas que estavam na excursão se juntarem a nós e começou a explicar que a Igreja de São João Batista era bem diferente da maioria, pois os chamulas tinham costumes próprios que eles mesclavam com o catolicismo e que podiam ser um pouco chocantes, como velas acesas no chão com oferendas ao redor e galinhas sendo sacrificadas. Claro, não poderíamos tirar fotos do interior. A igreja também não ficava de portas abertas para quem quisesse entrar. Era necessário comprar ingressos com a junta de turismo local e agendar a hora para visitar (o que o nosso guia fez enquanto estávamos passeando), para evitar aglomerações lá dentro.

Como éramos muitos, não podíamos entrar todos ao mesmo tempo, então esperamos em uma fila e íamos entrando conforme outras pessoas iam saindo. Como eu já havia acabado a cerveja, não havia muito o que fazer na fila.

Finalmente, entrei na igreja e realmente era algo diferente. Não existiam vitrais nem muitas janelas e a porta ficava fechada para controlar o acesso. Por isso, a luz lá dentro era pouca e as velas acesas ajudavam na iluminação das imagens dos santos. Havia muitos móveis de madeira, o que ajudava a escurecer o interior.

As velas estavam espalhadas por todos os lugares, em pequenos grupos, o que dava a impressão de várias oferendas terem sido feitas. Algumas das velas estavam rodeadas por pessoas ajoelhadas e rezando. Outras estavam cercadas de comidas (como tacos) e bebidas (em geral alcoólicas), o que me fez pensar em sentar por lá um tempinho para almoçar. Logo desisti da ideia.

Até agora, tudo parecia um pouco diferente, mas não era exatamente chocante. Era apenas uma cultura diferente celebrando o seu deus do seu próprio jeito. Foi aí que eu escutei o cacarejo de uma galinha. Olhei para trás e havia uma senhora com um saco preto se mexendo em seus braços. O som parecia vir de lá. Lembrei de que não devíamos encarar ninguém, então continuei olhando para as imagens de santos lá dentro, prestando atenção no som. O cacarejo soava cada vez mais desesperado. Eu sentia um misto de curiosidade e agonia por pensar naquela galinha sendo sacrificada. Queria sair de lá, mas não conseguia me mover. E fui apenas escutando. “Pó… pó… pó, pó, pó, póóóóóóó…” e silêncio.

Saí da igreja. Agora sim, eu estava chocado, mesmo que me sentisse um pouco mal, já que eu estava julgando aquelas pessoas. Se aquilo era normal para eles, não cabia a mim julgá-los. Além disso, eu como frango sem problemas, então já fiz muitas aves passarem por aquilo. E pior, sem precisar sujar as minhas mãos.

Enfim, era um conflito um pouco estressante para se ter em um dia de ressaca. Então, entrei no ônibus, junto com todos os outros. Sentei em minha poltrona na janela, encostei a cara na cortina, fechei os olhos e dormi.

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