Quem te Rio, quem te vê

Leonardo Pereira
Revista Passaporte
Published in
5 min readMay 23, 2018
Foto do autor — Todos os direitos reservados

O banco de trás daquele carro me incomodava. Eu tinha chegado no Rio de Janeiro faziam três dias, e pretendia me forçar a andar a pé mesmo sendo praticamente chicoteado pelo calor. Ali fazia tanto calor que eu tinha a impressão de poder levantar a mão e queimar os dedos no sol.

Coberto e confortável no banco de trás do uber, eu subia uma tortuosa via de acesso até meu destino, mas ficava pensando que não queria perder nenhum momento daquele caminho, e que mesmo só vendo casas muradas e vegetação, eu perdia alguma coisa balançando de um lado pro outro em cada curva mecânica que o motorista vencia.

Alguma casa no caminho poderia estar tendo um almoço em família, ao som de um samba alto que escapasse pelo portão, ou algum trecho seria menos inclinado e meninos estariam jogando futebol na calçada, habilidosos e sem deixar a bola rolar estrada a baixo. Eu certamente não teria o gingado para entrar por um segundo que fosse na brincadeira, mas enfim, tinha licença poética de turista para só observar as coisas sem realmente fazer parte delas. Chego mais rápido do que imaginava até meu destino e o que ficou na estrada é apagado pelo lugar mais sensacional que eu veria no Rio.

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Descobri a Casa das Canoas por foto, enquanto trabalhava como vendedor de loja, em 2011. Ficamos todos esperando a entrega do catálogo da coleção de verão daquele ano, e mesmo realmente interessado nas roupas que logo mais iríamos receber, meu olho ficou preso na casa que servia de cenário para o editorial. Eu tentei achar paredes, um teto, ou um segundo andar que fosse, e tudo faltava. As modelos estavam no meio do mato e ao mesmo tempo atrás de vidros, emolduradas por barras de ferro preto, e sob um teto que era uma placa de concreto, mais parecendo uma tampa na estrutura limpa e transparente daquela casa.

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Nunca mais deixei de me informar sobre aquele lugar. Niemeyer a construíra em 1953 para ser sua, mas logo desistiu de morar nela pela falta de privacidade em uma casa no meio de um morro de fácil acesso. Acabou mantendo ela lá, vazia e encrustada em volta de uma pedra, no meio da Floresta da Tijuca e, eventualmente, também na minha imaginação.

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O motorista falou que me esperava voltar. Desconfiei que ele iria me odiar depois, porque eu planejava fotografar cada canto daquele lugar e não estava com pressa. Mas hoje em dia só se entra na Casa das Canoas com visita guiada e hora marcada, então se ele achasse que demorei eu botaria culpa na guia. Explorei cada canto que pude. Escapei algumas vezes do grupo para tentar achar os ângulos pelos quais havia conhecido a casa. Reconheci as estátuas no jardim, as grades que o cercavam, e principalmente a pedra situada no meio da casa, ocupando parte de cada ambiente, incluindo a sala e o andar de baixo. Pude conhecer a cozinha que ainda contava com a maioria dos eletrodomésticos originais, e inclusive fui repreendido pela guia por tentar abrir a geladeira (eu sentia que mais gente da visita tinha essa vontade,mas logo perceberam que não era uma boa ideia).

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Depois de registrar cada cena da parte de cima, desci para conhecer o que restava da biblioteca de Niemeyer, próxima ao seu quarto original, onde agora ficava um escritório para administrar a construção. Estar ali me dava a sensação de que a casa ainda era habitada.

Desde da primeira vez em que conheci a Casa das Canoas, nas fotos do catálogo da loja em que trabalhava, eu esbarrei nela mais vezes. Em uma revista só de fotografias de moda (algum fotógrafo iluminado decidiu colocar um frame da entrada da casa, meio que gratuitamente, entre as fotos dos modelos), e em cada filme ou livro em que havia uma casa em um morro carioca, eu via a Casa das Canoas, precisava ser ela, mesmo que na minha imaginação.

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Agora, vendo ela pessoalmente, tocando em cada parede, deixando minhas digitais no vidro (sem a guia ver, claro), e me segurando pra não por o pé na piscina, a questão pra mim não era lembrar cada canto da casa, mas levar ela comigo na forma de fotos. Se nos conhecemos por papel, nada mais justo que casarmos de papel fotografado e tudo.

Mesmo morando longe, eu visito ela de vez em quando. Não tenho as chaves da porta, mas fico feliz em saber seu endereço. Guardo as fotos com muito apego, editei elas uma vez só e sinto que não posso mais mexer em nada. Depois de escrever uma carta de amor, é complicado ficar apagando o que se fez de primeira, quando os dedos ainda tropeçavam nas palavras. O que está feito está feito e fica guardado com carinho na memória do meu drive, e também na minha.

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Leonardo Pereira

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