Questão de personalidade

Annamaria Marchesini
Revista Passaporte
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5 min readFeb 6, 2019

Canasvieiras, em Florianópolis, não tem nada que a destaque entre as praias mais bonitas e interessantes da ilha de Santa Catarina. E daí?

O mar de Canasvieiras numa tarde de verão

Entre as 42 praias da ilha de Santa Catarina, Canasvieiras não é, nem de longe, a mais bonita ou a mais interessante. Mas tem personalidade. Suas águas claras são geralmente tranquilas — às vezes como as de um lago — e a faixa de areia é estreita. À tarde, quando a maré enche, ela desaparece em vários trechos e garças e outros pássaros buscam os peixes minúsculos que nadam no raso. Amendoeiras antigas lançam suas sombras na areia, abrigando os banhistas mais cautelosos como guarda-sóis gigantes. A 27 quilômetros do centro, no norte da ilha, Canasvieiras é meu canto em Florianópolis.

Quando vou para lá, publico fotos dela no Instagram. Uma vez um amigo disse que minhas imagens mostram uma Canasvieiras que não existe, porque nelas a praia é linda e ele não vê nenhuma graça no meu lugar preferido da ilha. Acontece que nas fotos que faço, eu mostro o que enxergo. E repetindo o clichê, há nas minhas fotografias de Canasvieiras muito amor envolvido: foi lá que meus pais decidiram viver a velhice e, depois que partiram, deixaram em mim o encanto por ela.

Carrinhos coloridos oferecem drinks diversos aos veranistas

Naquele trecho da enseada quase voltada para o continente, próximo à ponta da ilha, é tudo muito simples. Quem quer luxo vai para a vizinha Jurerê. Mais que beleza natural, Canasvieiras oferece intimidade. Sabe aquela sensação de chegar em casa e colocar a roupa folgada, tirar os sapatos e relaxar? Canas é assim. No verão suas areias são lotadas de argentinos, uruguaios, chilenos, paraguaios e, aqui e ali, alguns gaúchos e paranaenses que vão para lá com uma única vontade: relaxar, ir à praia e aproveitá-la até o fim das férias. Sem esta de desfile de corpinhos sarados ou olhares críticos (politicamente disfarçados, lógico). Ninguém, em Canasvieiras, parece se preocupar com as formas alheias.

Pescadores comercializam os peixes ali mesmo na areia

“Canas” (seu nome, reza a lenda, veio da “cana-viera”, espécie que era cultivada na região) é praia para famílias e elas a ocupam sem a menor cerimônia, espalhando baldinhos, cadeiras, barracas, cuias de chá mate, piscininhas, coolers e, nos fins de semana, as irritantes caixinhas de som. OK, “a perfeição é uma meta defendida pelo goleiro que joga na seleção”, já diria mestre Gil. A maioria dos turistas de Canasvieiras procura se instalar todos os dias no mesmo lugar, criando um ambiente onde todos meio que se conhecem, brincam com os cachorrinhos e as crianças, comentam notícias. A praia vira uma espécie de encontro de veranistas do sul da América do Sul.

A graça de Canasvieiras está nos detalhes. Em frente à praia está a Ilha do Francês (particular), tão perto que é possível ir até de caiaque ou SUP. De manhã cedinho, o sol cintila na beira do mar. Em vários trechos, arbustos e árvores se estendem na areia. No canto esquerdo, pedras delimitam o fim da praia e no outro extremo há o trapiche de onde saem as “fragatas de piratas” que fazem passeios abarrotadas de turistas. O mar tranquilo é seguro para as crianças e suas boias. No verão, sua água é quase morna. Pescadores voltam com os barcos pequenos cheios de peixes, comprados pelos turistas ali mesmo na areia (na época da tainha, entre maio e julho, eles constroem barracas e passam dias e noites vigiando o mar para ver a chegada dos cardumes). No verão, vendedores de castanha de caju e de queijo coalho, vindos de Sergipe (“Somos todos de lá”, me garantiu um deles), circulam o dia todo. Carrinhos coloridos vendem drinks. Este ano, imigrantes africanos estrearam na temporada percorrendo a praia oferecendo caixinhas de som, bolsas e tênis.

A Ilha do Francês e a “piscina” de Canas

No “centrinho” de Canasvieiras há posto de saúde, hotéis, pousadas, camping e comércio variado, com letreiros e comerciantes anunciando e atendendo em portunhol. Parte dele só funciona durante o verão. Nas estações mais frias, o bairro lembra — com boa vontade — aquelas praias meio desertas que são cenários de filmes franceses. Ruas vazias, vento frio, chuvinha e silêncio. No verão, ele se transforma num pequeno núcleo do Mercosul, com ruas e praia lotadas dia e noite onde o que menos se ouve é o português. Aí, quem gosta de sossego tem de tomar outro rumo.

Observe a tranquilidade

Falo verdades: gostar de Canasvieiras e de Florianópolis não me impede de perceber como a cidade é despreparada para o verão — policiamento deficiente, saneamento ruim, às vezes falta água, congestionamentos diários, poluição e alguns outros problemas. Acho o sistema de transporte público de Florianópolis o fim da picada. Um lugar que todos os anos recebe milhares de visitantes durante os meses de calor deveria estar preparado para isso. Mas nunca está.

Mesmo assim, a ilha ainda é um lugar incrível, com praias divinas, paisagens únicas, natureza exuberante, gastronomia deliciosa, um sotaque simpaticíssimo (muitas vezes incompreensível), recantos inesquecíveis e boa qualidade de vida. Florianópolis é cheia de encantos e, entre todos, eu despenco por Canasvieiras.

Barcos piratas que levam turistas a passeios pela ilha

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Annamaria Marchesini
Revista Passaporte

Sobre lugares por onde passo e outras coisinhas mais. Afinal, tudo é viagem. As fotos são minhas, para o bem e para o mal.