Questão de personalidade
Canasvieiras, em Florianópolis, não tem nada que a destaque entre as praias mais bonitas e interessantes da ilha de Santa Catarina. E daí?
Entre as 42 praias da ilha de Santa Catarina, Canasvieiras não é, nem de longe, a mais bonita ou a mais interessante. Mas tem personalidade. Suas águas claras são geralmente tranquilas — às vezes como as de um lago — e a faixa de areia é estreita. À tarde, quando a maré enche, ela desaparece em vários trechos e garças e outros pássaros buscam os peixes minúsculos que nadam no raso. Amendoeiras antigas lançam suas sombras na areia, abrigando os banhistas mais cautelosos como guarda-sóis gigantes. A 27 quilômetros do centro, no norte da ilha, Canasvieiras é meu canto em Florianópolis.
Quando vou para lá, publico fotos dela no Instagram. Uma vez um amigo disse que minhas imagens mostram uma Canasvieiras que não existe, porque nelas a praia é linda e ele não vê nenhuma graça no meu lugar preferido da ilha. Acontece que nas fotos que faço, eu mostro o que enxergo. E repetindo o clichê, há nas minhas fotografias de Canasvieiras muito amor envolvido: foi lá que meus pais decidiram viver a velhice e, depois que partiram, deixaram em mim o encanto por ela.
Naquele trecho da enseada quase voltada para o continente, próximo à ponta da ilha, é tudo muito simples. Quem quer luxo vai para a vizinha Jurerê. Mais que beleza natural, Canasvieiras oferece intimidade. Sabe aquela sensação de chegar em casa e colocar a roupa folgada, tirar os sapatos e relaxar? Canas é assim. No verão suas areias são lotadas de argentinos, uruguaios, chilenos, paraguaios e, aqui e ali, alguns gaúchos e paranaenses que vão para lá com uma única vontade: relaxar, ir à praia e aproveitá-la até o fim das férias. Sem esta de desfile de corpinhos sarados ou olhares críticos (politicamente disfarçados, lógico). Ninguém, em Canasvieiras, parece se preocupar com as formas alheias.
“Canas” (seu nome, reza a lenda, veio da “cana-viera”, espécie que era cultivada na região) é praia para famílias e elas a ocupam sem a menor cerimônia, espalhando baldinhos, cadeiras, barracas, cuias de chá mate, piscininhas, coolers e, nos fins de semana, as irritantes caixinhas de som. OK, “a perfeição é uma meta defendida pelo goleiro que joga na seleção”, já diria mestre Gil. A maioria dos turistas de Canasvieiras procura se instalar todos os dias no mesmo lugar, criando um ambiente onde todos meio que se conhecem, brincam com os cachorrinhos e as crianças, comentam notícias. A praia vira uma espécie de encontro de veranistas do sul da América do Sul.
A graça de Canasvieiras está nos detalhes. Em frente à praia está a Ilha do Francês (particular), tão perto que é possível ir até de caiaque ou SUP. De manhã cedinho, o sol cintila na beira do mar. Em vários trechos, arbustos e árvores se estendem na areia. No canto esquerdo, pedras delimitam o fim da praia e no outro extremo há o trapiche de onde saem as “fragatas de piratas” que fazem passeios abarrotadas de turistas. O mar tranquilo é seguro para as crianças e suas boias. No verão, sua água é quase morna. Pescadores voltam com os barcos pequenos cheios de peixes, comprados pelos turistas ali mesmo na areia (na época da tainha, entre maio e julho, eles constroem barracas e passam dias e noites vigiando o mar para ver a chegada dos cardumes). No verão, vendedores de castanha de caju e de queijo coalho, vindos de Sergipe (“Somos todos de lá”, me garantiu um deles), circulam o dia todo. Carrinhos coloridos vendem drinks. Este ano, imigrantes africanos estrearam na temporada percorrendo a praia oferecendo caixinhas de som, bolsas e tênis.
No “centrinho” de Canasvieiras há posto de saúde, hotéis, pousadas, camping e comércio variado, com letreiros e comerciantes anunciando e atendendo em portunhol. Parte dele só funciona durante o verão. Nas estações mais frias, o bairro lembra — com boa vontade — aquelas praias meio desertas que são cenários de filmes franceses. Ruas vazias, vento frio, chuvinha e silêncio. No verão, ele se transforma num pequeno núcleo do Mercosul, com ruas e praia lotadas dia e noite onde o que menos se ouve é o português. Aí, quem gosta de sossego tem de tomar outro rumo.
Falo verdades: gostar de Canasvieiras e de Florianópolis não me impede de perceber como a cidade é despreparada para o verão — policiamento deficiente, saneamento ruim, às vezes falta água, congestionamentos diários, poluição e alguns outros problemas. Acho o sistema de transporte público de Florianópolis o fim da picada. Um lugar que todos os anos recebe milhares de visitantes durante os meses de calor deveria estar preparado para isso. Mas nunca está.
Mesmo assim, a ilha ainda é um lugar incrível, com praias divinas, paisagens únicas, natureza exuberante, gastronomia deliciosa, um sotaque simpaticíssimo (muitas vezes incompreensível), recantos inesquecíveis e boa qualidade de vida. Florianópolis é cheia de encantos e, entre todos, eu despenco por Canasvieiras.