Antonio Carlos Boa Nova
Revista Passaporte
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9 min readJan 5, 2024

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— Também vão para as Brigadas? — perguntou a moça na fila do visto.

̶ Não, só passear.

Notei desapontamento, mas ela logo se reanimou ao encontrar mais participantes da Brigada Sul-Americana de Trabalho Voluntário e Solidariedade com Cuba. A cada um, suas curtições! Ou devoções, como a do brasileiro que determinara que se despachassem suas cinzas para Cuba — didática, a funcionária consular orientava uma representante do falecido.

Em São Paulo, o Consulado emite vistos quatro dias por semana, três horas diárias. Levando o formulário chatinho e mais os documentos, sai na mesma manhã. Depois, para o desembarque em Cuba, há outro formulário, também detalhista, preenchido no celular.

Feita em dezembro de 2023, minha viagem com Odete durou 17 dias — ela já estivera lá, tempos atrás, mas para mim foi a primeira vez. Começamos por Havana, no outrora aristocrático bairro de El Vedado, alojados no apartamento de um casal que aluga suítes. Os hospedeiros tiveram que informar nossos passaportes às autoridades, e um pequeno erro de algarismo motivou um telefonema cobrando esclarecimentos.

De El Vedado ao centro, estende-se o Malecón, amurada construída no começo do século XX para conter ressacas do mar — aliás, agitado durante nossa estadia. De ponta a ponta, oito quilômetros. O calçadão proporciona boas caminhadas, e o escritor Leonardo Padura diz apreciá-las. Mas confessa: “faz tempo que não a realizo da melhor maneira: a pé, sem pressa, no fim da tarde, de leste para oeste, no sentido do tempo histórico de seu desenvolvimento, de La Habana Vieja ou colonial, onde nasceu a cidade, a El Vedado, para onde ela cresceu ao longo do século XX.”

O andarilho avistará prédios novos e antigos, renovados ou decadentes — amostra do que verá no centro. Há quem leve anzóis para pescar ali.

O Malecón e o mar inquieto.
Na calçada oposta ao Malecón, arte para os passantes.

Ligando a orla ao Parque Central, no coração de Habana Vieja, corre o Paseo del Prado, aprazível alameda aberta no século XVIII, sob inspiração do Paseo existente em Madri (mas para alguns, seria réplica das Ramblas de Barcelona, que também dão para o mar). Na mesma ocasião, no Rio, Mestre Valentim criava o Passeio Público.

Paseo del Prado.
Parque Central. Repaginados, carrões dos anos 50 servem de programa para turistas.

Em Habana Vieja, impressionam os contrastes. Onde houve restaurações, há prédios de admirável beleza, muitos do século XIX. Ou de antes, como as edificações da colonização espanhola e seus espaços públicos. Pela localização geográfica, Cuba foi peça importante no império espanhol, e a cidade de Havana só era superada pelas capitais vice-reais, México e Lima.

Parque Central, com o Gran Teatro de La Habana, no lugar onde havia funcionado o Teatro de Tacón, inaugurado em 1838. Ao fundo, a cúpula do Capitólio.
Interior do Gran Teatro de La Habana. É sede do Balé Nacional, por muitos anos dirigido por Alicia Alonso, extraordinária bailarina.
No centro, prédios restaurados.
Em certos trechos, a fiação é subterrânea.
Mansão recuperada.
Plaza Vieja.
Coexistência entre o renovado e o decrépito.

Andando poucos metros ou dobrando uma esquina, surge a degradação urbana: ruas esburacadas, acúmulo de lixo, prédios que mal se sustentam, muitos deles funcionando como habitações coletivas em insuficientes condições sanitárias. Em “Trilogia Suja de Havana”, escreve Pedro Juan Gutiérrez; “O bairro deixou de ser o que era. (…) Os prédios se deterioraram por falta de manutenção e pouco a pouco se transformaram em cortiços com milhares de pessoas amontoadas. (…). Gente sem perspectiva (…), e rindo de tudo. (…) No meio do desastre as pessoas riem, sobrevivem, tentam levar a vida do melhor jeito possível. (…) Já que nasceram no meio de ruínas, o importante é não abandonar a luta.”

Rua típica do centro — nem todas apresentam tão bom estado.

Percorremos algumas dessas ruas, abordados às vezes por pedintes ou pessoas oferecendo serviços (guia, cambista…). O que nunca aconteceu foi sentirmos insegurança. Cuba tem delinquência comparativamente baixa, talvez pela escassez de dinheiro para armas e para drogas mais pesadas. Até o final da viagem, estivemos dia e noite sossegados, onde quer que andássemos. Nas ruas e praças, crianças brincavam alegres.

Não dá para contar com o transporte coletivo. Notamos diversos pontos de ônibus apinhados de passageiros. E uns raros veículos, caidaços e superlotados. Não é problema recente — e nem era novidade em 2019, quando Leonardo Padura o mencionou em “Agua por todas partes” -, mas a escassez de combustível o vem agravando. E há outras carências — em várias ocasiões, observamos padarias com fila na porta.

Para uma visão panorâmica de Havana, tomamos um ônibus turístico circular, do tipo existente em outras cidades do mundo. O passeio compensou. Um dos atrativos foi a gigantesca Plaza de la Revolución, denominada Plaza Cívica quando o ditador Fulgencio Batista a inaugurou. Destaca-se o monumento a José Martí, herói da independência nacional, obtida no final do século XIX. Funcionam ali vários órgãos governamentais, e a fachada do Ministério do Interior exibe enorme alto-relevo representando Che Guevara na imagem tornada célebre. No mesmo estilo, o Ministério das Comunicações retrata Camilo Cienfuegos, um dos líderes da Revolução, desaparecido pouco após a tomada do poder. Era naquele cenário que Fidel Castro fazia longos discursos para a multidão de apoiadores.

Na Plaza de la Revolución, monumento a José Martí.

No restante, recorríamos a táxis, quando os achávamos. Ou então caminhávamos — e realmente esticamos longos trajetos.

No bairro onde nos hospedamos, funciona o Museu de Artes Decorativas, que nos recomendaram. Está instalado em requintado palacete que pertenceu a uma família de empresários, e o mobiliário é quase todo francês, com peças típicas da corte. A última proprietária, uma condessa, deixou Cuba pouco depois da Revolução; talvez imaginasse voltar, pois muitas obras artísticas permaneceram escondidas, sendo descobertas só após a nacionalização do imóvel.

Naquela manhã, éramos apenas quatro visitantes: duas chilenas, Odete e eu. Foi interessante conhecer o museu, mas seu nome parece inadequado. Não são “artes decorativas”, e sim o que restou de uma coleção particular, praticamente importada da Europa, sem nada expressar da arte cubana. Quando já saíamos, estava chegando uma funcionária, e a vimos desculpar-se pelo atraso: passara horas esperando ônibus.

Na despedida, o guia insistiu para visitarmos um outro museu, o dedicado a Napoleão Bonaparte. Já nos haviam sugerido, enfatizando que seria, no mundo, um dos melhores no gênero: exibe até mesmo um dente do Imperador... Declinamos da sugestão, convencidos, porém, de que a mania de Napoleão é imperecível.

Pretendíamos seguir para o centro, mas estava difícil conseguir táxi: na situação atual, eles não se permitem rodar e gastar combustível buscando incertos passageiros. Encontramos um parado na rua, e o motorista nos explicou que estava na fila para abastecer no posto lá adiante… Dias depois, um taxista nos contaria que recorre ao mercado negro. E transitando conosco numa cidade do interior, um motorista nos informaria que precisava abastecer; não fomos a posto nenhum, mas até um quintal meio escondido, onde havia galões.

Encaramos vinte minutos de pernada até um hotel, pois sempre há táxis por lá. Acabamos pegando um “coco”, mini-táxi de dois lugares acoplado a uma moto.

Descemos na Plaza de San Francisco de Asís, bonito recanto do centro. Depois de uma volta, detivemo-nos, curiosos, diante de um portal que abria para um pátio interno. Solícita, uma funcionária logo nos convidou para darmos uma olhada; as dependências estavam fechadas, mas passamos uns cinco minutos no pátio, sempre acompanhados por ela. No final, sussurrando, pediu-nos “una propinita discreta”, pois os salários andam baixos, e a carestia, pesada…

Prédio na Plaza San Francisco de Asís.

Com fome, interessamo-nos por um restaurante que oferecia lagosta a preço tentador. O “maître” nos dissuadiu:

̶ Estamos fechados, sem gás de cozinha. Mas o restaurante ali da esquina tem menu igual, aos mesmos preços.

O tal restaurante funciona num prédio antigo bem reformado. Tinham gás, mas não lagosta, e o cardápio efetivo, diferente do anunciado, oferecia poucos pratos. Das duas sobremesas, escolhi o flã de caramelo, e o garçom informou que não o haviam preparado, por falta de leite e açúcar; a outra opção também não tinham. Soubemos então que se trata de restaurante gerenciado pelo Estado, como também aquele onde faltava gás.

Após três dias em Havana, teríamos praias na Costa Norte. Inicialmente Varadero, celebrado balneário; depois, Cayo Santa María e Cayo Coco, onde o governo construiu longos trechos de estrada avançando pelo mar, a fim de estimular polos turísticos. Para hospedarmo-nos lá, só com reservas em “resorts” no esquema “tudo incluído” — refeições em bufês onde o hóspede pode empanturrar-se de comida sem variedade nem muita graça.

Os hotéis ficavam à beira-mar, mas nossos planos foram frustrados por uma frente fria — incomum nessa estação do ano, disseram-nos. Restaram-nos as caminhadas na areia, experimentando ventinho frio e apreciando o multicolorido mar caribenho. Entre os demais hóspedes, predominavam canadenses e russos: para eles, frio não é problema…

Varadero.
Cayo Santa María.

Para nos trasladarmos entre os lugares, contratamos táxis, o que proporcionou animadas conversas com os motoristas. Contou-nos um deles que para levar a família, no seu próprio carro, àquelas praias, precisa de licença das autoridades. É consensual — e não só entre taxistas - o descontentamento com a situação cubana, que anualmente tem levado 250 mil pessoas a emigrar; seria como se a cada ano 5 milhões deixassem o Brasil.

Num dos hotéis, havia carros parados na entrada: uma queda de energia impedia de abrir a cancela, e inexistia a alternativa manual. Não tivemos dúvida: apanhamos a bagagem e percorremos os 100 metros até a portaria bendizendo o inventor da mala de rodinhas.

Com a falta de combustível, as estradas andavam bem vazias. Eu nunca vira tantos cavalos puxando charretes ou carroças. Mas nas cidades pequenas e no campo, as casas pareciam em melhor estado que em Havana.

Atravessando a ilha, fomos dar na Costa Sul - primeiro, Trinidad (70.000 habitantes); depois, Cienfuegos (140.000). Ao contrário de Havana, cidades bastante limpas. Nas imediações de ambas, mas fora do perímetro urbano, há belas praias, onde finalmente desfrutamos mar calmo.

Praia em Trinidad.
Beira-mar em Cienfuegos.

Trinidad data do início da colonização espanhola, mas seu casario colonial reflete o apogeu da cultura açucareira, nos séculos XVIII e XIX. Lembra Parati e as cidades coloniais mineiras. A própria pousada onde nos hospedamos é uma casa do século XIX que foi submetida a vigorosa e caprichada reforma.

Rua em Trinidad. No padrão das colônias espanholas, a sarjeta está no meio, não junto das calçadas.
Nossa pousada em Trinidad.

Cienfuegos foi fundada por franceses no início do século XIX, e sua marca aparece no estilo neoclássico das construções e também nas ruas, mais largas que o habitual em Cuba. Destaca-se o Parque José Martí, praça central cercada de prédios imponentes. No bem restaurado Teatro Tomás Perry, assistimos à vibrante (e ruidosa) apresentação de um grupo mexicano de “mariachis”, aplaudidíssimo pela plateia.

Parque José Martí.
Cienfuegos: rua de pedestres.
O Paseo del Prado existente em Cienfuegos é a mais longa alameda arborizada de Cuba.

Na orla marítima, Cienfuegos também tem seu Malecón. Seguindo por ele na direção de Punta Gorda, admiram-se antigas mansões que foram revitalizadas. Merece especial atenção o Clube Náutico, amplamente aberto à população: taxas módicas permitem acesso à piscina, parquinho e outras dependências, e também o almoço.

Parque Náutico.
Voltamos de moto-táxi.

Novamente em Havana para o embarque de volta, hospedamo-nos no centro, num tradicional hotel construído no século XIX. Restaurado, funciona sob administração estatal.

Quando fomos buscar as malas, o apartamento estava sem água no banheiro. Mas no “check-out”, cobraram por uma garrafinha de água — outros hotéis, embora não tão estrelados, oferecem-na de cortesia. Não nos sobrando pesos cubanos, única moeda que aceitavam, pagamos no cartão de crédito…

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Antonio Carlos Boa Nova
Revista Passaporte

Sociólogo. Autor do livro “Fora da Ordem: do claustro ao mundo secular”.