Uma quinzena portuguesa, com certeza
José Saramago abre seu livro Viagem a Portugal chamando-o de história. “História de um viajante no interior da viagem que fez, história de uma viagem que em si transportou um viajante, história de viagem e viajante reunidos em uma procurada fusão daquele que vê e daquilo que é visto.” Ao volante do carro, ele acabara de percorrer um Portugal atrasado, recém-saído da ditadura salazarista.
Mas não é da política portuguesa que Saramago fala no livro. O foco recai nas belezas artísticas espalhadas pelo país. Preciosidades em museus pouco visitados, em catedrais, em igrejinhas antigas — para visitar algumas, foi preciso sair à procura de quem guardava a chave.
A viagem que Odete e eu realizamos em maio foi bem mais modesta — apenas o eixo Lisboa-Porto -, e num Portugal já diferente do retratado pelo escritor. Cenário que também se distingue do que visitamos há uns vinte anos: hoje, país arejado e moderno, membro da União Europeia, atraindo levas de turistas.
Talvez, mais turistas do que desejaríamos. Mas há muito o que ver sem precisar acotovelar-se na multidão. Em Lisboa, evitamos incursões pela congestionada área central — Chiado, Rossio e adjacências -, embora não resistíssemos a contemplar a vista do alto da Escadaria do Duque. E fomos dar olhadas em bairros simpáticos e charmosos, como Arroios e Ourique.
Visitamos alguns museus, e o do Azulejo tem minha preferência. Instalado no antigo Convento da Madre de Deus, apresenta um histórico da produção de azulejos em Portugal. Alguns, bem antigos, da época moura, com os desenhos geométricos presentes nas artes visuais dos muçulmanos. Em certo salão, um painel de azulejos clássicos portugueses — azuis e brancos — dá uma visão panorâmica da Lisboa do século XVIII, antes do arrasador terremoto. Na sequência da viagem, admiraríamos outros trabalhos de azulejos, como na Igreja do Carmo ou na estação ferroviária São Bento, ambas no Porto.
Foi também prazerosa a visita ao Museu de Arte Antiga. Para Saramago, devia chamar-se Museu das Janelas Verdes, nome da rua onde se acha. Prossegue ele: “Não se descreve o Louvre de Paris, nem a Galeria Nacional de Londres. Também não se descreve o Museu das Janelas Verdes. É o que temos, e temo-lo bom.”
Estivemos ainda no Museu Gulbenkian, originado na vasta coleção de arte de um empresário enriquecido com o petróleo; pena que não se permitam fotos das obras — pinturas clássicas e modernas, esculturas, joalheria, tapeçaria, antiguidades egípcias e de outras civilizações... Nascido na comunidade armênia do Império Otomano, Gulbenkian (1869–1955) teve papel importante na articulação do cartel das multinacionais que repartiram a exploração e distribuição mundiais de petróleo. Nesse arranjo, conseguiu para si uma quota de 5% da participação societária; com o decorrer dos anos e o crescimento do mercado, seus ganhos acumulariam uma fantástica fortuna. Não querendo continuar remunerando o famoso “Mr. 5%”, as multinacionais do petróleo tentaram descartá-lo, mas recuaram ante o risco de um processo judicial que revelaria dados comprometedores.
Tendo seus principais escritórios em Paris e Londres — naturalizara-se britânico -, Gulbenkian mudou-se para Lisboa durante a Segunda Guerra e ali passou os últimos treze anos. No final da vida, resolveu perpetuar seu legado em uma fundação filantrópica e cultural, a ela destinando a coleção de arte que formara desde a mocidade, muitas vezes com orientação de especialistas. Museus ingleses e americanos procuraram atrair aquele acervo, mas foi em Portugal que ele ficou — para isso, influiu a carga de impostos comparativamente menor.
No trajeto de Lisboa a Coimbra, paramos em Alcobaça para conhecermos o antigo mosteiro e sua igreja. A construção começou no século XII, quando Afonso Henriques, primeiro rei português, chamou monges cistercienses franceses para se instalarem na vasta área que doou; mas as edificações atuais provêm de diversas reformas ao longo dos tempos. Além da influência religiosa, os monges tiveram atuação inovadora na história econômica de Portugal pelas técnicas agrícolas que difundiram, baseados em práticas que conheciam de outros mosteiros.
Com a sobriedade e imponência do gótico, a igreja de Alcobaça, diz Saramago, é apropriada para “grandes corais e solenes imprecações”. Jazem nela D. Pedro I e Inês de Castro, personagens de célebre tragédia amorosa do século XIV. Contrariando desígnios políticos do rei Afonso IV, seu pai, o jovem príncipe Pedro mantinha um romance com Inês. Intrigas palacianas acusaram-na de conspiração, e ela foi sumariamente executada. Depois que assumiu o trono, Pedro encomendou os dois túmulos e os mandou dispor frente a frente para que ele e Inês, quando despertassem para o Juízo Final, logo se encontrassem.
Em Batalha, poucos quilômetros adiante, está o Mosteiro de Santa Maria da Vitória. Sua construção foi iniciada no século XIV, celebrando a Batalha de Aljubarrota, em que os portugueses derrotaram tropas castelhanas. Entre os personagens — reais ou lendários — daquela epopeia, figura a padeira Brites de Almeida. Segundo contam, ela acabara de assar pães ali perto de onde guerreavam. Durante a batalha, soldados inimigos tiveram fome e foram atraídos pelo cheirinho de pão fresco. Notando que vinha gente, Brites escondeu-se com sua pá de madeira. Quando passou o primeiro castelhano, veio por trás e sapecou-lhe uma bordoada no cocuruto. Arrastou o corpo até o forno e deixou lá. Logo apareceu outro castelhano, e mais outro, somando sete; e a cena se repetindo. No conto “A Abóbada”, de Alexandre Herculano, a briosa padeira diz ao rei D. João I: “A pá não se quebrou nos sete que mandei de presente ao diabo, e ainda lá está para o que der e vier”.
O estilo é gótico, na versão que predominou em Portugal, o manuelino. Iluminada por vitrais que suavizam a austeridade do conjunto, a igreja tem dimensões portentosas — a altura alcança 32 metros.
Em contraste, o Claustro Real encanta pela delicadeza dos rendilhados de pedra.
Merece destaque a abóbada que cobre a Sala do Capítulo, construção arrojada para a época; na inauguração, os construtores, temendo um desabamento, teriam utilizado prisioneiros para retirarem os suportes…
Onde não se chegou a construir abóbada foi no mausoléu octogonal denominado Capelas Imperfeitas; apesar do nome, deve-se reconhecer que o céu aberto transmite um encanto especial.
Foi breve nossa passagem por Coimbra. Começamos com uma agradável caminhada à beira do rio, deleitando-nos na paisagem que Camões chamou de “doces e claras águas do Mondego”.
Depois, circulamos pelo centro, em giro que incluiu a Sé Velha, do século XII, considerada o mais belo exemplar do estilo românico em Portugal.
Forçando as panturrilhas, subimos ladeiras estreitas e tortuosas até chegarmos à Universidade de Coimbra, a mais antiga do país e uma das mais tradicionais da Europa. Lá estudaram vários participantes da Inconfidência Mineira e outros personagens de nossa história colonial — ao contrário do que fez a Espanha em seus domínios, a metrópole portuguesa não permitia estudos superiores por aqui.
Encerrado o ano letivo, havia mais turistas que estudantes. Passeamos no ensolarado pátio e fomos conhecer algumas dependências, como a capela de São Tiago, com seu monumental órgão — se tocado na intensidade total, colocaria em risco a segurança das instalações. Fizemos também uma visita guiada à Biblioteca Joanina, de decoração barroca, tendo a faixa superior das paredes adornada por afrescos. Na conservação dos livros, os bibliotecários recebem o auxílio de morcegos ali mantidos como predadores de traças e outros insetos; não chegamos a vê-los.
Nossa despedida da cidade se deu no Museu Machado de Castro, sediado em prédio onde os romanos tinham o Fórum; foi instrutivo percorrer as antigas fundações. No acervo artístico, o museu tem bonitas esculturas da Idade Média e Renascença, como a “Descida da Cruz” e a “Virgem da Anunciação”.
Fazia calor na cidade do Porto, e logo aprendemos que lá o chope se chama “fino”, e não “imperial”, como em Lisboa. Sendo muitas as atrações para tão curta estadia, era preciso escolher. E uma das mais compensadoras opções foi simplesmente flanar pelas ruas, apreciando o estilo das casas e desfrutando as paisagens valorizadas pelo rio Douro.
Entre os bons programas, destaco a visita guiada ao esplêndido Palácio da Bolsa, reflexo da riqueza ali existente no século XIX. Também a Igreja de Santa Clara, joia do barroco. Outra boa pedida é o Centro Português de Fotografia, estabelecido onde antes funcionou a cadeia; havia uma emocionante exposição de fotos de mutilados nas guerras do colonialismo português na África. Ou ir ao parque da Fundação Serralves para conhecer o Museu de Arte Contemporânea, um dos melhores da Europa, em prédio do renomado arquiteto Álvaro Siza
No elegante Teatro São João, assistimos a um musical. Comemorando o cinquentenário da Revolução dos Cravos, o espetáculo também expressava inquietação com o reaparecimento de correntes obscurantistas. Na sala lotada, aplausos vibrantes. Curiosamente, a apresentação inicial coube a um ator surdo-mudo que se mostrou muito comunicativo.
Na viagem, não poderiam faltar uns acordes de fado, que dizem expressar a alma portuguesa. Escreveu Júlio Dantas que “é destino de Portugal morrer abraçado ao fado”. Com alguma pesquisa, Odete descobriu um recital de excelentes músicos e cantores atuando fora do circuito “pega-turista”. Gostamos muito.
Nem só de arte vive o viajante, e o próprio Garrett, nas Viagens na Minha Terra, exclama: “Que me importam a mim agora as antiguidades, as ruínas e as demolições, quando eu sinto demolir-me cá por dentro por uma fome exasperada e destruidora, uma fome vandálica, insaciável!”.
Felizmente, contávamos com a cozinha portuguesa — peixes e frutos do mar, sobretudo o bacalhau -, regada a excelentes vinhos. E completada com pastel de nata e demais confeitos.
Transcorridas duas semanas apreciando belezas naturais, artísticas e culinárias, soou a hora de seguirmos adiante. Para encerrar, volto a Saramago: “A felicidade, fique o leitor sabendo, tem muitos rostos. Viajar é, provavelmente, um deles. Entregue as suas flores a quem saiba cuidar delas, e comece. Ou recomece. Nenhuma viagem é definitiva.”