Rússia mil graus

Heitor Flumian
Revista Passaporte
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14 min readJun 6, 2018

Museus com acervos imperdíveis, construções de arquitetura deslumbrante e uma cena cultural efervescente fazem da capital Moscou e da bela São Petersburgo destinos a serem explorados além da Copa do Mundo

Por Heitor Flumian / Fotos Jorge Lepesteur

Locais tomam sol à beira do rio Neva, em São Petersburgo

No entardecer de um dia de sol muito esperado em Moscou, moscovitas de todas as idades aproveitam para explorar o Parque Zaryadye, o primeiro a ser construído na cidade nos últimos 50 anos, inaugurado em setembro de 2017. Do alto dos postes, caixas de som emanam músicas clássicas, momentaneamente ofuscadas por uma canção pop russa saída da caixinha portátil de uma jovem. Com a frase “Paris Hilton is a bitch’’ estampada em preto na blusinha cinza, ela caminha em direção ao espaço mais disputado do pedaço, uma passarela em forma de “v” apelidada de flying bridge por transpor o pesado tráfego de carros e avançar sobre o Rio Moscou feito um trampolim. A estrutura também passa por cima de um lago congelado que, com o verão batendo à porta, começa a derreter aos poucos — tal como os corações russos em relação à Copa do Mundo, que acontece no país entre 14 de junho e 15 de julho.

“O futebol divide o posto de esporte mais popular da Rússia com o hóquei no gelo”, explica o estudante de hotelaria Dmitry Golubev, 23 anos. “Se a nossa seleção fosse melhor, poderíamos até gostar mais”, brinca. Para a publicitária azerbaijana Leyla Akhmedova, 25, radicada na cidade desde criança, existem três tipos de pessoa quando o assunto é o mundial. “Há quem não fale em outra coisa, os indiferentes e os que querem sair da cidade para evitar a baderna”, conta. A estimativa oficial é de que mais de 1,5 milhão de turistas passem pelo país durante a competição e Moscou é um destino crucial: com dois estádios-sede — o Luzhniki, palco do jogo de abertura e o da final, e a Otkrytie Arena, onde o Brasil enfrenta a Sérvia no dia 27 – vai receber 12 das 64 partidas a serem disputadas. “Com sorte, a temperatura chega aos 27°C nesse período, o que torna fácil encontrar pelas ruas pessoas mais abertas e de bom humor. No inverno, com o termômetro marcando -30ºC, é difícil até ouvir um ‘oi’”, diz Leyla.

No idioma local, o cumprimento equivalente seria privet e, considerando o protagonismo russo no cenário geopolítico dos últimos séculos, além da histórica animosidade com os falantes nativos do inglês, vale desembarcar sabendo pronunciar ao menos expressões como kak dela? (como vai?) para quebrar o gelo logo de cara. As boas maneiras, no entanto, não evitam que taxistas tentem cobrar preços absurdos por menor que seja a corrida, tornando imprescindíveis o Uber ou aplicativos como o Maxim e Yandex, bastante populares por aqui.

Flying Bridge e a vista a partir dela

ADEUS, LÊNIN

Na hora de perambular pela capital, o próprio Parque Zaryadye se mostra um interessante ponto de partida, sobretudo pelo cinema 5D instalado no moderninho Media Center. Ele “coloca” o espectador em um voo panorâmico e um tanto imersivo sobre os principais pontos turísticos da metrópole de 12 milhões de habitantes. O lado ruim da sessão é se dar conta de que levaria semanas para conhecer tudo; o bom, é descobrir que grande parte das atrações fica na região central chamada de Garden Ring, que pode ser desbravada a pé. A começar pela hipnotizante Catedral de São Basílio, a alguns metros dali, com suas coloridas cúpulas que parecem ter saído de um conto de fadas. Em seu interior revestido de belos afrescos, não deixe de assistir à apresentação do coral Doros, que entoa cânticos religiosos a cada 15 minutos sob um dos domos: a acústica do lugar colabora para uma experiência tocante.

Catedral de São Basílio

A igreja ortodoxa é um dos cartões postais da enorme Praça Vermelha, famosa por abrigar os desfiles militares dos tempos de União Soviética (1922 a 1991). De formato retangular, é delimitada no outro extremo pelo Museu Histórico do Estado, que mais lembra um castelo com paredes de tijolo avermelhadas. Ao lado dele, um trecho da muralha do Kremlin protege o complexo que abrange a sede do governo, palácios, igrejas e as catedrais da Anunciação e da Assunção, que merecem uma visita pelo conjunto de abóbadas douradas. Colado à fortaleza, o Mausoléu de Lênin mantém embalsamado o corpo do líder da Revolução Russa (1917) desde sua morte, em 1924. Do outro lado da praça o centro comercial GUM, tão grandioso quanto às construções vizinhas, acomoda sob um bonito teto de vidro grifes de luxo como Cartier, Hermès e Ermenegildo Zegna, e prova que é possível ir às compras no país que por décadas refutou o capitalismo e seu way of life. E há opções para todos os bolsos.

Jovens em uma das travessas da rua Arbat

A movimentada rua Arbat, um calçadão repleto de lojinhas de roupas, suvenires, sebos e restaurantes, é o lugar ideal para encontrar as típicas matrioskas, bonecas de madeira que guardam dentro de si suas versões menores, e observar o trabalho de artistas e músicos de rua, tão comuns em outras capitais da Europa, mas não aqui. “Moscou mudou bastante nos últimos dez anos. Ainda há muito por fazer, mas hoje há mais espaços para os pedestres e até para os ciclistas. A cidade está mais humanizada”, diz Lana M., relações públicas do hotel Kempinski.

As mudanças também chegaram à cozinha moscovita. Um dos expoentes dessa transformação é o chef Vladimir Mukhin, 35. Quinta geração de uma família de chefs, ele está à frente do White Rabbit, 23º colocado na lista The World’s 50 Best Restaurants, da revista britânica Restaurant. “Foi-se o tempo em que culinária russa era sinônimo de receitas pesadas com batatas, arenque e borsch (sopa de beterraba). Os pratos aqui respeitam a tradição, mas são reinventados conforme a sazonalidade dos ingredientes”, diz Vladimir. Uma das experiências mais disputadas do restaurante é o Chef’s Table, na qual o chef cozinha tête à tête para até 16 pessoas e conta a história de cada iguaria. “É como se eu recebesse os clientes na minha casa: não há nada nos separando. Esse conceito é o futuro”, diz.

White Rabbit e sua alta gastronomia

As boas opções gastronômicas se estendem até a outra margem do rio Moscou, na região chamada pelos locais de “ilha”. Seguindo em direção ao monumento que homenageia o czar Pedro, o Grande, chega-se à antiga fábrica de chocolate Krasny Oktyabr (Outubro Vermelho), hoje ocupada por espaços culturais como o Strelka — o bar no rooftop é uma boa pedida no verão — cafés, estúdios e casas noturnas — a Gipsy, a Icon e a Rolling Stone costumam lotar.

Drink do Mendeleev

Para começar a noite com bons e criativos drinks — e amainar a sensação de -1°C das madrugadas de primavera – tente a sorte no Mendeleev Bar; e você vai precisar. Primeiro, para encontrá-lo: sem letreiro que o identifique na fachada, funciona no subsolo de uma modesta casa de lámen. Depois, para entrar: o crivo dos seguranças em Moscou, conhecido como face control, pode variar da qualidade das roupas dos clientes à quantidade de pessoas que chegam de uma vez, passando pelo fato da pele não ser tão branca ou os traços parecerem muito latinos – de todos os modos, aparentar sobriedade (etílica) vai aumentar suas chances, sempre.

Outro ambiente de atmosfera descolada, com cervejas russas no menu, é o Denis Simachev, onde um rapaz de no máximo 30 anos nos oferece, na barra do bar, cocaína e companhia, caso topemos dar um pulo em seu apartamento que fica nos andares de cima do prédio. “It’s a fucking crazy city, bro”, avisa, rindo, antes de dar o fora.

SEGUE O BAILE

Se arte é um dos motivos da viagem, atravesse a ilha no sentido sul e mergulhe nas obras mais importantes produzidas por artistas russos entre o século 11 e o 20 expostas nas duas galerias Tretyakov. Perto delas, escondido no acolhedor Parque Gorki, o Museu Garage aposta na arte contemporânea. “Os russos têm uma conexão com a cultura muito forte. Aqui é normal os pais levarem as crianças a óperas, teatro e balé desde muito cedo”, diz o brasileiro David Motta, 21, que vive na cidade desde 2010. Natural de Cabo Frio (RJ), David desembarcou no país como uma jovem promessa de origem humilde, sozinho e sem sequer falar inglês, um roteiro corriqueiro na vida de jogadores de futebol. Mas, em vez de chuteiras coloridas e uniforme com números estampados, vestiu sapatilhas pretas e uma malha lisa, e hoje é um dos seis estrangeiros no corpo de quase 200 bailarinos do cultuado Ballet Bolshoi. “Para se ter uma noção, foi aqui que andei de metrô pela primeira vez. E fiquei chocado: não sabia que era tão lindo quanto a um museu. Lembro de pensar: ‘como construíram algo assim embaixo da terra?’”, conta.

David Motta: voando no Ballet Bolshoi

Os detalhes que o impressionaram são os suntuosos lustres, candelabros, mosaicos e vitrais, sem falar nas colunas de mármore e estátuas de bronze, que fazem do metrô moscovita o mais fascinante do mundo. Construído a mando do ditador Josef Stálin para servir de palácio para o povo — e lembrá-lo, diariamente, da “generosidade” do Partido Comunista –, teve sua primeira linha inaugurada em 1935. Hoje, são 14, que ligam mais de 200 estações (desça na Sportivnaya para ir ao estádio Luzhniki e na Spartak se o jogo for na Otkrytie Arena). É quase obrigatório se aventurar por elas (55 rublos a passagem), seja aleatoriamente ou escolhendo algumas a dedo, como a Novoslobodskaya, que parece desenhada pelo arquiteto catalão Antoni Gaudí, ou a futurista Mayakovskaya. Mas fique alerta: embora o sistema de som funcione em inglês nos vagões, as placas fora deles estão no alfabeto local. Depois desse passeio, sim, você poderá partir pleno para outro destino imperdível nestas terras: São Petersburgo.

Estação Mayakovskaya
Estação Komsomolskaya

É “COOL” QUE FALA?

Basta uma ligeira volta pelo centro de São Petersburgo, a uma hora de voo da capital — ou quatro em trem de alta velocidade — , para sentir o clima da cidade, tal qual descreve David. “É muito diferente de Moscou. É mais europeia e as pessoas são mais disponíveis. Se você pedir uma informação na rua, mesmo que não falem inglês, vão te pegar pelo braço e dar um jeito de te ajudar”. Isso fica ainda mais evidente na extensa Nevsky Prospekt, a principal avenida da região. Entre suas construções de fachada neoclássica, é possível encontrar grandes lojas de departamento da Europa, restaurantes de nacionalidades diversas — dê uma chance à cozinha georgiana, uzbeque e à azerbaijana — e, cena rara no país marcado pela intolerância à homossexualidade, um ou outro casal gay caminhando de mãos dadas.

“São Pete”, como dizem os locais, foi criada para ser a capital dos czares. Com pouco mais de 300 anos, cidade jovem para os padrões do continente, já se chamou Petrogrado, em alusão a Pedro, o Grande, seu fundador, e Leningrado, da morte de Lênin ao fim do regime soviético — foi aqui que os bolcheviques tomaram o poder. Também foi cenário de um dos episódios mais emblemáticos da 2ª Guerra Mundial, ao ser bombardeada durante mais de dois anos por tropas nazistas e resistir — no prédio nº 14 da Nevsky, foi conservada uma inscrição grafada numa coluna em memória ao período: “Cidadãos! Sob fogo de artilharia, este lado da rua é o mais perigoso.”

Cenas cotidianas de São Petersburgo

Hoje, a maior ameaça por aqui é o atacante egípcio Mohamed Salah, um dos artilheiros da temporada europeia jogando pelo Liverpool, que deve estar em campo no duelo entre o Egito e a Rússia no dia 19, no estádio Krestovsky. A arena, a qual se chega pela estação de metrô Krestovsky Ostrov, também vai sediar o confronto entre Brasil e Costa Rica no dia 22, e mais cinco partidas, incluindo uma semifinal. “A seleção russa tem uma defesa experiente, mas lenta, e perdeu o Kokorin, um de seus principais atacantes que se lesionou. Acredito que passem da fase de grupos, mas não devem ir muito longe. Certo é que vão promover um grande evento, isso eles sabem fazer”, analisa o técnico italiano Roberto Mancini, que já comandou times como Inter de Milão, Manchester City e acabou de trocar o Zenit, o maior clube da cidade – por um acaso dos deuses do futebol, concentrado no nosso hotel – para assumir a seleção da Itália. “Espanha e Alemanha são seleções que correm por fora rumo ao título. Mas o grande favorito mesmo é o Brasil”, aposta.

Mancini já foi “umas três vezes’’ ao Hermitage, seu lugar preferido em São Petersburgo. Mas precisaria voltar outras tantas para conhecer tudo que um dos maiores museus do mundo, aberto ao público em 1852, oferece. O que começou como a coleção de obras da czarina Catarina, a Grande, hoje se espalha por mais de mil salas da antiga residência dos imperadores, à beira do rio Neva. São cerca de 3 milhões de peças, que vão de objetos pré-históricos e arte primitiva da Sibéria a telas de Michelangelo, Renoir e Van Gogh, passando por joias de todos os quilates. É muito brilho.

O rolê seguinte pode ser simplesmente atravessar a ponte Palace Bridge, caminhar pela outra margem do rio e ver para crer. Nos dias de sol, ainda que os termômetros marquem 5°C, locais vestem trajes mínimos e improvisam uma praia nos arredores da Fortaleza de Pedro e Paulo. Retorne pela Troitskiy Bridge e se guie pelas cúpulas de cores vibrantes e cheias de detalhes da Catedral do Sangue Derramado, que preserva preciosos mosaicos do lado de dentro. Ao seu lado, corre um dos canais que renderam à cidade comparações com Veneza e Amsterdã e em uma das pontes que o cruzam o pintor Evgeniy Boytcov, 71, dá as primeiras pinceladas do dia.

Sala do Hermitage e pesca no rio Neva

“Os moscovitas que me perdoem, mas essa é a verdadeira cidade dos artistas”, diz, lembrando que o poeta Alexander Pushkin e os escritores Fiódor Dostoiévski e Vladimir Nabokov moraram aqui em algum momento, em casas transformadas em museus. “Meus filhos também são artistas: tenho quatro meninas e quatro meninos. Vi a mãe deles pela primeira vez numa quadra, jogando vôlei. Ao final da partida, cheguei nela e falei: ‘Preciso fazer uma pintura sua’. E lá se vão 45 anos juntos”, conta.

Para viver da arte, Evgeniy penou. “Tive que me livrar do alistamento no exército e cheguei a apanhar de agentes da KGB, o extinto serviço secreto soviético, por não gostarem dos quadros”, lembra, rindo com os olhos azuis infantis. “Pintar é a minha vida, e não faço isso por dinheiro. Faço para lembrar.”

O pintor Evgeniy Boytcov

OS DONOS DA NOITE

A segunda maior cidade russa — são 5 milhões de habitantes — também sabe ser moderninha. Em 2016, uma ilha conhecida como New Holland Island foi revitalizada e passou a abrigar shows e sessões de cinema ao ar livre, além de uma antiga prisão naval tomada por restaurantes, galeria de arte e lojas de roupas e acessórios de marcas locais, como a Store e a Otdel Island. Com uma proposta semelhante, o Golitsyn Loft reúne tudo isso em uma espécie de cortiço arrumadinho com estabelecimentos que dispõem de sacadas voltadas para o rio Fontanka. Reserve a hora do café para o Tsiferburg, de atmosfera boêmia e um tanto original, onde se paga um preço por tempo gasto ali para poder usufruir do piano, dos livros e de espaços de coworking.

O último punk soviético (dizem)

À noite, a dica é encontrar um lugar entre os bares da rua Rubinstein, que cruza a Nevsky perto da ponte Anitchkov. Para adentrar a madrugada, procure inferninhos como a L.U.X e o Vnvnc ao redor da praça Konyushennaya — nela serão colocados telões para os torcedores acompanharem os jogos da Copa. Se a intenção é curtir um som ao vivo, vá ao The Hat para ouvir jazz fino ou ao Money Honey para esbarrar em seres humanos que buscam nos refrões de hits do rock clássico um refúgio das muitas formas de decadência que nos espreitam – tal qual o senhor de uns 70 e poucos que se denomina “o último punk soviético”; ou, perdão, talvez algum outro cliente o tenha apelidado assim, ou um de nós, não me lembro ao certo. Só me recordo que ele gostou, e riu, e contou causos em russo, gesticulando em russo, e, então, uma máxima veio abaixo: a que uma vez alcançado o estágio de ebriedade até russo se fala.

O bonachão Vitali, 30, de sobrenome impronunciável e inglês esforçado, porém sofrível, também estava lá. O happy hour com os amigos da firma tinha acabado, mas ele quis continuar, na carreira solo. E ficou um tempo emendando cigarros na porta do recinto. Suspeito que fosse seu aniversário e ninguém tinha lembrado, acho que chegou a comentar algo. O que importava é que agora Vitali tinha novos amigos e fazia questão de anunciar para qualquer um: “São brasileiros!”, como se fosse algo legal. Legal mesmo era ele, que, como a maioria dos rapazes e das moças russas, dançam como se ninguém estivesse vendo, por menos ritmo e doses de vodka que tenham no sangue – estão ocupados demais se divertindo.

Não se espante se no percurso noturno topar com meninas montadas em cavalos imensos: elas vão tentar te vender uma volta por um preço que talvez não vale – 1500 rublos (quase R$ 100) por 10 minutos.

Um passeio muito mais barato e popular são os tours pelos telhados e terraços de prédios com vistas incríveis conhecidos como “roofing”. “Uma das melhores é a do rio Neva com a Catedral de Santo Isaac atrás a partir da Ilha de Vassiliev”, diz o estudante de relações internacionais Artem Green, 22. Para participar, basta ficar atento a adesivos colados no asfalto ou pesquisar em comunidades de “rooftop trips” no Facebook.

A brincadeira é ilegal, mas há quem garanta que a polícia faz vista grossa. “O segredo é ser silencioso e não ficar muito tempo em cada lugar, embora, em alguns deles, dê até para abrir um vinho, relaxar e curtir a paisagem”. Voltar da Rússia hexacampeão, ao que parece, é só um detalhe.

[matéria publicada na edição nº 195/junho 2018 da Revista da GOL]

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