Rabat e a Vizinha Salé

Viagem pelo Marrocos, com fotos de Odete Polesi (2/4)

Antonio Carlos Boa Nova
Revista Passaporte
5 min readApr 16, 2018

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Em Rabat, foz do rio Bou Regreg.

Na estação ferroviária de Rabat, tomamos um petit taxi, que é o táxi comum, e ele já tinha um passageiro. No Marrocos, são usuais os táxis compartilhados, tipo lotação. Ao entregarmos a folha com o endereço do hotel e o mapinha, o motorista pareceu hesitar. Tendo sido alfabetizadas em árabe, certas pessoas talvez sintam dificuldade com caracteres latinos − até sabem ler, só que a interpretação não é imediata nem fácil. Mas o outro passageiro olhou o endereço e acabou por orientá-lo.

O hotel, realmente uma pousada ou riad (jardim), ficava dentro da medina, a cidade velha de Rabat, e carros não iam até sua porta. Deixados na entrada da medina, fomos conduzidos por um rapaz que transportava as malas num carrinho de madeira. Em cinco minutos, chegamos lá. Não demoraríamos a aprender como nos localizarmos naquele labirinto.

O riad foi construído no lugar onde já esteve a casa mais antiga da medina − portanto, habitado há séculos. A decoração caprichou nos mosaicos, ponto forte da arte marroquina. Em viagem anterior ao sul da Espanha, tivéramos ocasião de apreciar mosaicos e azulejos do tempo da dominação árabe, em palácios ou em mesquitas depois transformadas em igrejas católicas. A diferença é que no Marrocos eles estão em toda parte, como expressões artísticas que permanecem vivas.

Pátio interno do Riad Sidi Fatah, pousada onde nos hospedamos.

Dá para ir a pé dali até o centro de Rabat, de avenidas ajardinadas e arborizadas e de comércio moderno. Em outra direção, mas também perto, chega-se à Kasbah des Oudaias, núcleo inicial da cidade, formado no século XII em torno de um misto de fortaleza e templo. Hoje, boa parte funciona como área de lazer, com o aprazível Jardim Andaluz e os mirantes abrindo vistas para o mar e para a foz do rio Bou Regreg, bem ali em baixo. Há outro setor que é residencial, de ruas estreitas e casas brancas com barras azuis, muitas delas construídas por muçulmanos vindos da Andaluzia, depois da chamada Reconquista Cristã.

Muralha da “kasbah” de Rabat.
Detalhe da área residencial da “kasbah”.

Capital do país, Rabat sedia o palácio do rei Mohamed VI − mas há outro palácio em Fez, antiga capital. Desde que ele subiu ao trono, ocorreram reais melhoras nos índices de educação e saúde; mas sua fortuna pessoal é imensa, num país de população basicamente pobre. Na “Primavera Árabe” de 2011, houve manifestações no Marrocos, e até imolações em vias públicas. Habilmente, o rei tomou então a iniciativa de abrir mão de algumas prerrogativas. Com a mesma habilidade, manobrou para manter o essencial de seus poderes. Em toda parte onde íamos, havia retratos do homem.

De bonde, fomos à vizinha cidade de Salé, na margem oposta do Bou Regreg, de onde também há belas vistas da foz e do mar. No século XVII, aquele trecho do litoral foi reduto de piratas europeus que chegaram a proclamar independência; até hoje, os habitantes celebram sua expulsão. No romance Robinson Crusoe, lê-se que o herói esteve ali, como prisioneiro dos piratas, antes de escapar e, mais tarde, sofrer naufrágio e aportar numa ilha deserta.

Em Salé, visitamos a Madrassa (“médersa”, para os marroquinos) Abu Al-Hassan, escola de formação muçulmana criada no século XIV que funcionou por quinhentos anos. De novo, pudemos apreciar uma decoração magnífica nos mosaicos, nos azulejos e nos trabalhos de madeira e de gesso. Fazendo parte do conjunto arquitetônico, está a mesquita. Segundo o padrão do Marrocos, é vedada a visitas de não muçulmanos (excetuada a Mesquita Hassan II, em Casablanca), mas foi possível uma olhadinha pelo lado de fora.

Entrada da madrassa de Salé.
Detalhe do interior da madrassa.

Depois, percorremos o souk (mercado), onde os alimentos vendidos são basicamente de produção local; no outro dia, em nova festa de cores e aromas, ainda circularíamos no mercado de Rabat e provaríamos alguns produtos.

Aves à venda no mercado de Salé. No Marrocos, “carne fresca” se refere a um animal que é comprado vivo. Uma vez escolhida, a galinha pode ser degolada ali mesmo, diante do freguês...
Ditado marroquino: “se o pai é um alho, e a mãe, uma cebola, que cheiro terá o filho?”

A principal riqueza do Marrocos são as jazidas de fosfato, mas a agricultura tem papel importante. À beira das estradas, sempre víamos terras cultivadas, com destaque para olivais − as azeitonas são excelentes, sobretudo as pretas. Chamam a oliveira de árvore da paz, pois são necessários muitos anos de tranquilidade para que um olival possa crescer. Uma especialidade do Marrocos é o óleo de argan, muito apreciado no trato cosmético e na culinária.

Também vimos muitas plantações de trigo, na variedade que serve para a produção de semolina para cuscuz − em algumas delas, um jumento puxava o arado a sulcar a terra. E ainda existem as frutas: laranjas e mexericas muito melhores que as nossas, grapefruits, maçãs, framboesas, tâmaras, frutas secas… E as romãs, enormes e bem vermelhas; mais de uma vez tomamos seu suco preparado na hora, em plena rua.

Desde a saída da madrassa, fomos orientados por um senhor que tomara a iniciativa de nos guiar. Nada combinara previamente conosco. Mostrou-se, é verdade, um bom guia, mas no final quis cobrar caro. Acabamos pagando bem menos do que ele queria e bem mais do que julgávamos razoável. Na viagem, foi a primeira experiência de pechincha, e me faltou maior firmeza. Talvez precisasse entrar já de sola desde o início: “Que os demônios mais endiabrados decepem a língua que ousa falar em tamanha exorbitância!”.

Prosseguindo nossa viagem pelo Marrocos, tomaríamos no dia seguinte o ônibus para Chefchouen. Precisávamos comprar a passagem, e discutíamos, no bonde, o caminho para irmos à Compagnie de Transports au Maroc; a informação do Google Maps deixava dúvidas. Consultado por minha mulher, um passageiro bem jovem disse que descêssemos no fim da linha; e como também desceria lá, prontificou-se a nos orientar no local. Fez mais: atravessou conosco a avenida, chamou um táxi, nos acompanhou no trajeto e, adiantando-se a nós, pagou a corrida. Embasbacados, só nos restou agradecer. Inacreditável a gentileza dos marroquinos!

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Antonio Carlos Boa Nova
Revista Passaporte

Sociólogo. Autor do livro “Fora da Ordem: do claustro ao mundo secular”.