Relatitos de Viagem I

Ariadne Nácul
Revista Passaporte
Published in
4 min readApr 20, 2018

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Photo by Sofia Sforza on Unsplash

Gosto de ser sempre uma das últimas a entrar no avião. O lugar é marcado, e minha mala de mão dificilmente precisa ficar no compartimento superior ao meu assento. Ela sempre cabe embaixo da poltrona a minha frente.
O voo para Guayaquil foi com uma aeronave bem pior do que aquela que fui para Santiago. Mas estava longe de estar lotado — a minha poltrona era a 27A, janela, e caminhando até lá fiquei de olho nas tantas fileiras vazias.
Já havia um casal de velhinhos sentados no corredor e meio da fileira 27. Ficaram bem felizes quando ofereci a janela e fiquei com o corredor para mim. Já havia falado com a aeromoça, e ela me avisaria se ninguém ocupasse os assentos vazios mais à frente.
E ninguém ocupou, então logo vim para a fileira 10.

Sozinha.
O avião começou a andar.

Até chegar um homem muito alto. Sentou na poltrona do corredor. Dei um sorriso — mas era um sorriso enviesado. Queria as três poltronas só para mim. Embora ele parecesse legal, meu primeiro contato foi de má vontade.
Existem diversos passageiros que podem sentar ao seu lado no avião:

Os práticos. Passageiros que à primeira vista você sabe que viajam muito: não estão nem aí para as instruções de segurança, logo já começam sua rotina aérea, seja ela um livro, notebook com planilhas de excel, ou então adormecem instantaneamente.

Os não práticos: sentam, e logo após pedem licença para pegar algum objeto esquecido no compartimento superior. E logo depois pedem licença de novo, pois querem ir ao banheiro. Se remexem e não conseguem ficar confortáveis. Prestam uma atenção incrível aos procedimentos de segurança, como se tivessem certeza de que, dentro de uma hora ou menos, ocorrerá despressurização da cabine e máscaras de oxigênio cairão automaticamente . (Me vem à memória uma lembrança de quando era criança, em um voo da Varig. Me ofereceram balinhas de menta, e eu podia pegar quantas quisesse. Lembro de olhar maravilhada às instruções de segurança).

Os sem noção: preciso explicar? Preciso. São sem noção, simplesmente. Aqueles que só querem sair quando o aviso de atar cinto está ligado. Aqueles que chutam acidentalmente o assento à sua frente o tempo todo. Que escutam música em volume alto. Que colocam as bagagens de qualquer jeito no compartimento superior. Que quando o avião aterrissa já querem levantar e pegar as malas (e se nesse meio tempo te empurrar for possível , assim o farão). Não seja um sem noção, por favor.

O cara alto que sentou ao meu lado faz parte do grupo EMPATIA, com ascendente em práticos.
Explico porquê.
Qual seu interesse em saber da vida de alguém que você muito provavelmente nunca verá de novo?
Para muitas pessoas, o interesse é zero. Geralmente os práticos são assim: simplesmente não querem saber.
O cara alto ao meu lado — Camilo — quis saber sobre a minha vida. Assim como eu quis saber da dele. A graça de viajar, para mim, consiste muito nessa relação de empatia que se cria com pessoas que eu nunca mais vou ver. Embora o Camilo logo ajeitasse suas coisas da melhor maneira possível, e logo lesse seu livro, e desajeitadamente acomodasse seus joelhos de maneira que não cutucassem ninguém — ele deve ter pelo menos 1,90 — portanto, pertencendo ao grupo dos práticos, ele quis ir além.
Logo descobriu que eu estava indo para as Ilhas Galápagos, que era advogada (tão bom dizer que já tenho uma profissão), que meu pai era médico e que eu tinha quatro irmãos. E eu logo descobri que ele era argentino, de Córdoba, que tem nada mais nada menos que cinco filhos — está indo para uma praia na costa do Equador visitar suas filhas gêmeas de 6 anos, que moram em frente ao mar. Ele trabalha com plantas medicinais, tem uma parte da cabeça raspada, a outra metade tem uma trança comprida e tem um piercing na boca. Queria poder tirar uma foto.
Me explicou que a planta que eu ouvi falar no Peru, cujo nome não lembro, mas expliquei no pior portunhol possível que é tipo um copo de leite virado de cabeça para baixo, é conhecida no Brasil por Santo Daime. Dã, Ariadne.

Diria que viajar é, além de todo o resto, distribuir historinhas por aí. Contar sobre você e ouvir sobre o outro. Lembrar que uma vez conheci um argentino que me explicou sobre a planta que parece um copo de leite virado — e para quem eu admiti que nem lembrava porque havia escolhido o Direito.

(É possível pertencer a vários grupos de passageiros de uma vez só — eu diria que faço parte do grupo práticos/empáticos/irritadiços e sem paciência para com os outros grupos).

Relatitos de Viagem II

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Ariadne Nácul
Revista Passaporte

not all those who wander are lost (but I might be) @ariadnenacul