Antonio Carlos Boa Nova
Revista Passaporte
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5 min readAug 12, 2020

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Em Istambul, a igreja de Santa Sofia voltou a ser mesquita, tal como havia sido entre 1453, ano da vitória turca, e 1934, quando o presidente Kemal Atatürk decretou sua transformação em museu. Coerente com o programa modernizador que implantava, Atatürk levou em conta o significado do lugar para fiéis de diferentes religiões e também seu valor artístico. A decisão de Erdogan, atual presidente, condiz com sua própria política ˗ populismo retrógrado, que faz demagogia prometendo restaurar um passado mítico.

Santa Sofia (Ayasofya, como os turcos a chamam, seguindo a denominação grega) data do tempo do imperador Justiniano I, no século VI. De fora, é muito bonita; por dentro, impressiona mais ainda. Antemeu de Trales e Isidoro de Mileto, os arquitetos, projetaram um vão livre com dimensões que permaneceriam inigualadas durante séculos. Uma abóbada fantástica: 31 metros de diâmetro e 56 de altura. E um conjunto de janelas e arcadas permitindo a entrada de luz.

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Aquela era a maior igreja da cristandade, e assim permaneceu por quase um milênio, como lugar marcado pela história. Sede do Patriarcado de Constantinopla, era ali que se coroavam os imperadores bizantinos. Santa Sofia também seria importante palco do Cisma do Oriente, em que os cristãos ortodoxos se separaram de Roma. Motivada por divergências teológicas e sobretudo disputas de poder, a fratura se consumou no século XI.

O local também teria sido decisivo ˗ diz a lenda ˗ para que o Príncipe Vladimir, da Rússia, levasse seu povo a adotar o cristianismo. Querendo deixar o paganismo e abraçar uma religião mais elaborada, ele enviou observadores a outras terras. Os que foram a Constantinopla voltaram encantados com os rituais bizantinos ˗ diziam não saber se estavam na terra ou no céu. Já os que foram saber do islamismo vieram com a notícia de que seria preciso abandonar a vodca… Então, o príncipe não teve mais dúvidas.

Em 29 de maio de 1453, depois de progressivos avanços sobre o território do Império Bizantino, os turcos otomanos finalmente conquistaram Constantinopla. O cerco da cidade durou mais de um mês. Mas enquanto as muralhas eram atacadas, imperturbáveis teólogos bizantinos se digladiavam na discussão de temas cruciais, como o sexo dos anjos ˗ daí, a expressão. O escritor turco Orhan Pamuk, Nobel de Literatura, diz que o modo como as pessoas se referem àquele fato histórico já revela se elas pertencem ao Oriente ou ao Ocidente. Para os ocidentais, é a Queda de Constantinopla; para os orientais, a Conquista de Istambul.

Impressionado com a grandeza e beleza de Santa Sofia, o sultão Mehmed II, que comandara a conquista, logo reconheceu a importância de preservar o prédio, agora na condição de mesquita. A conversão do templo não constitui exceção na história das religiões: na mesma época, na Península Ibérica reconquistada aos mouros, antigas mesquitas se tornavam catedrais católicas; séculos antes, em Roma, o Panteão do paganismo fora transformado em igreja cristã, como permanece até hoje, e o mesmo iria depois suceder na América, com templos incas e astecas.

Enquanto Ayasofya foi mesquita, as paredes estiveram caiadas para encobrir as figuras humanas, proibidas no Islã. Mas uma vez inaugurado, o museu começou a recuperar os belos mosaicos bizantinos, e vários deles ressurgiram; é trabalho de décadas ˗ em 2009, durante nossa visita, havia andaimes lá dentro.

Prometem os governantes que Santa Sofia continuará aberta à visitação de pessoas de qualquer nacionalidade e fé religiosa, como ocorre com catedrais cristãs e também com as próprias mesquitas, lá mesmo na Turquia. E que os mosaicos cristãos continuarão intactos, embora cobertos por véus nas horas de rituais muçulmanos. Na sexta-feira 24 de julho, quando uma multidão de fiéis acompanhou Erdogan na cerimônia de reinauguração da mesquita, um grande véu branco ocultava o famoso mosaico de Maria com o Menino Jesus. E para tristeza dos historiadores da arte, tapetes se estendiam por todo o solo, escondendo os mármores coloridos e a simetria de seus desenhos.

Embora seja direito dos turcos decidirem sobre seus bens públicos, vejo a decisão como retrocesso, quando comparada com o gesto de abertura e de discernimento civilizatório que teve Atatürk. Na própria Turquia, é também esse o pensamento de expressiva parcela da opinião pública. Erdogan, porém, com a retórica nacionalista e o apelo a ressentimentos islâmicos, joga para a arquibancada ˗ os segmentos mais conservadores e menos instruídos da população, base maior do seu eleitorado.

Já Atatürk foi uma figura marcante. Carismático herói de guerra, governou a Turquia por 18 anos e implantou ˗ com certo autoritarismo, é verdade ˗ um programa de reformas para forjar uma nação moderna, de estilo europeu.

Na república laicizada que fundou, a hierarquia religiosa não mais podia interferir nos assuntos de Estado, como outrora. As mulheres obtiveram igualdade de direitos; inclusive votarem e serem votadas ˗ dez anos antes das francesas. No Império Otomano, para o homem que quisesse romper o casamento, bastava dizer três vezes à esposa, diante de testemunhas: “eu me divorcio de você”. A mulher, porém, tinha de pedir a dissolução ao marido; se ele não quisesse, era necessário recorrer aos tribunais.

O calendário foi adaptado ao modelo ocidental, e as unidades de medida passaram a ser as do sistema métrico. Em lugar da escrita árabe, adotada na tradição islâmica, entrou o alfabeto latino, mais apropriado para a organização de um sistema de escrita representando os sons da língua turca; precisou-se realfabetizar as pessoas, mas os programas de alfabetização ganharam eficácia.

Falecido em 1938, Atatürk continua sendo reverenciado. Em qualquer prédio público, loja, botequim, se vê seu retrato; nas notas e moedas, sua efígie. Turcos com quem conversamos não hesitaram em afirmar que seu legado foi bom para o país. Quando estávamos lá, comemorou-se o feriado que o homenageia; além das solenidades públicas, chamavam a atenção as bandeiras turcas em janelas de apartamentos, nos carros, em toda parte…

Lembrança de nossos dias na Turquia.

Até aqui, Erdogan tem obtido sucesso em seu projeto de poder. Resta saber até onde conseguirá chegar, se prosseguir trafegando na contramão da história. Em que pesem uns tantos recuos pontuais, tenho a impressão de que, no essencial, a modernização desencadeada por Atatürk subsistirá.

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Antonio Carlos Boa Nova
Revista Passaporte

Sociólogo. Autor do livro “Fora da Ordem: do claustro ao mundo secular”.