Seja bem-vindo ao meu lar, Montevidéu

Em junho completei 5 anos vivendo em Montevidéu, Uruguai.

Regiane Folter
Revista Passaporte

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Quando cheguei ao país em 2014, o plano era ficar aqui por somente um ano, já que essa era a duração da posição na qual eu vinha trabalhar. Mas aí o trabalho de um ano virou dois, fiz amigos, comecei projetos, construí uma relação e fui ficando, ficando, e fiquei. Hoje, já em outro trabalho, outra casa e outro entorno, ainda conservo a mesma sensação de pertencimento com que esse país me recebeu nos meus primeiros dias aqui.

Não sei bem o que me faz gostar tanto do Uruguai e me leva a abrir mão de viver mais perto da minha família e de tudo que me acompanhou durante 22 anos. Talvez seja a tranquilidade dessa capital meio cidade grande, meio povoado, onde nunca há tanta pressa e sempre há tempo para dar “oi” ao vizinho. Talvez seja a beleza das suas ruas emolduradas por árvores, do calçadão da praia cuja água é parte rio, parte mar, ou do céu multicolorido que parece feito de aquarela. Talvez seja a amabilidade das pessoas, um povo acolhedor, amigável e transparente.

Se você já esteve em Montevidéu alguma vez, passeando ou vivendo, talvez se lembre das pequenas alegrias que essa cidade envelhecida inspira. À primeira vista, Montevidéu pode parecer cinzenta e parada. É preciso estar um tempinho para conseguir captar o que está além da arquitetura antiga, da serenidade, da baixa temperatura de um país que têm mais meses de frio que de calor. Porque Montevidéu está cheia de cores, sabores, cheiros e perspectivas que me surpreendem diariamente, que me fazem sentir aceita, querida, acolhida. E é sobre algumas delas que eu quero falar.

O que é que Montevidéu tem?

O clima

Photo by Alex on Unsplash

No país onde “o sul é nosso norte”, o frio é um fator constante. Sempre digo que no Uruguai temos 3 meses de verão e os outros 9 são inverno. Outono e primavera? Eufemismo. É preciso fazer um parênteses e explicar que eu não gosto muito do frio. Um clima geladinho é bom pra comer e dormir, mas fora isso sempre vi o frio como algo mais negativo que positivo. Ele machuca, faz doer, deixa a pele quebradiça, o nariz escorrendo, a garganta dolorida.

Mas vivendo aqui não tem como escapar e lá pra maio mais ou menos já começamos a preparar a roupa de inverno e guardar os artigos de verão. Embora eu ainda prefira o calor ao frio, nesses últimos 5 anos aprendi a gostar do clima fresco e a aceitá-lo como parte da experiência. Aprendi a usar cachecol, luva, meia de lã, calça térmica, gorro forrado. Só ainda não senti frio suficiente para usar protetores de orelha, mas quem sabe?

Aprendi também que o frio prolongado não é desculpa para não fazer coisas — é preciso adaptar-se. Se vai fazer frio mesmo e todos já sabemos, que opção temos? Hibernar com certeza não é uma delas. Por isso, mesmo nos dias mais gelados, as pessoas saem de casa, vão a bares, caminham pelo calçadão, andam pela cidade munidos de suas armaduras anti-frio. Nos edifícios e comércios o aquecimento está constantemente ligado, há lareiras e estufas à gás em todos os lados, e comida e bebida quentinha esperando por quem quiser se aventurar.

Enfrentamos o frio, os resfriados e as nuvenzinhas que saem da boca quando falamos, tudo isso com coragem e esperança de que logo o verão vai chegar. E o verão no Uruguai é uma coisa linda… Parece que quanto mais a temperatura sobe, e menos camadas de roupa temos em nossos corpos, mais aumenta o bom humor e a vontade de aproveitar. Durante o verão, os dias são amenos e mais longos. Montevidéu fica vazia, porque todos partem para o leste em busca de praias e tranquilidade. Há uma alegria generalizada, um furor por estar com os amigos e entes queridos em churrascos, almoços, merendas, enfim, qualquer encontro possível que encha a pança e o coração.

Porque essa é outra coisa que fica ainda mais evidente no verão: os uruguaios são muito sociáveis. A vida aqui acontece em comunidade e existem grupos para tudo, pra praticar esporte, estudar, tomar chimarrão na beira do mar, comer nhoques no dia 29, etc. As amizades e a família possuem grande importância e é no verão que mais coisas podemos fazer, juntos, queimados de sol e já esquecidos das mazelas do frio. Afinal de contas, o inverno ajuda a valorizar ainda mais a lindeza do verão.

O carnaval das murgas

El Furgón

E falando de verão, é nessa época que acontece a maior festa uruguaia do ano: todo o mês de fevereiro é dedicado ao carnaval. Na realidade, já no finalzinho de janeiro começam as apresentações e a folia vai até o começo de março, um período cheio de cor, ação, gente acordada até tarde e muito calor. A programação é variada e constante ao longo do mês. Vários desfiles tomam conta das ruas, com lindas passantes dançando, música de tambor e enfeites mirabolantes. Além do candombe e outros ritmos típcos daqui, várias apresentações que reúnem canto, dança, teatro e crítica também são parte dessa festa. Uma delas, minha preferida, é o carnaval das murgas.

Um uruguaio com certeza poderia dar uma explicação muito mais correta, científica até, sobre a murga. Eu só posso compartilhar com você o que vejo e sinto quando esses grupos de cantores/dançarinos/comediantes sobem ao palco. Cada murga é um grupo composto por várias pessoas, quase sempre mais homens que mulheres. As murgas se apresentam todo o ano, mas é no carnaval que elas brilham mais. Nessa época, são as estrelas dos distintos palcos da cidade, onde aparecem sempre usando roupas extravagantes e coloridas, perucas bizarras e maquiagem circense. Embora a parte visual desses grupos chame muito a atenção, na verdade o mais espetacular das murgas é o que elas têm para dizer. A voz dos murgueiros é algo impressionante e cada cantor tem seu próprio tom e estilo. Porém, quando se juntam, todas dão vida a uma única e vibrante voz, como se na sua coletividade a murga tivesse uma personalidade própria.

E sobre o que cantam? Sobre tudo. Sempre sobre política. Futebol. Costumes. Manias. Acontecimentos marcantes. Acontecimentos banais. A murga se renova a cada carnaval, e seus integrantes usam os meses que passaram desde o último fevereiro para contar uma história com toques de drama, comédia, críticas ácidas e ironias disfarçadas. Rimos e aplaudimos quando a murga corajosa diz aquilo que todo mundo tem vontade de dizer. Absorvemos a música e o turbilhão de vozes com um arrepio no corpo. Também sentimos lá no fundo o aperto típico do choro ao reconhecer naquelas vozes tantos problemas sociais que enfrentamos. Mais um ano passou, e continuamos criticando as mesmas coisas.

Há uma competição entre todas as murgas e por isso em suas apresentações elas têm que cumprir com requisitos de tempo e formato. Mas, mesmo com essa estrutura, não perdem sua magia e naqueles minutos que compartilhamos, cantores e audiência, brincamos juntos, dançamos juntos, rimos juntos, até cantamos juntos. Sofremos pelas mesmas mazelas e dividimos as pequenas alegrias. A murga em sua cantoria resume o ano que passou e o coloca diante de nossos olhos tal como foi. Por momentos, as divisões entre nós desaparecem e nos transformamos em um único ser que respira, canta e aplaude. Pelo que foi bom, pelo que não foi, pelo que continua sendo e pelo que não deveria ser. E nesse pedacinho de festa, murga e público deixam suas críticas para inspirar nossas ações até o próximo carnaval.

Continuaremos descobrindo as belezas apaixonantes de Montevidéu e do Uruguai no próximo post :)

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Regiane Folter
Revista Passaporte

Escrevi "AmoreZ", "Mulheres que não eram somente vítimas", e outras histórias aqui 💜 Compre meus livros: https://www.regianefolter.com/livros