Sobre não pertencer a uma cultura

Os sutis percalços de ser estrangeiro e se encaixar nos hábitos sociais de um novo país.

Igor Mariano
Revista Passaporte
5 min readApr 24, 2018

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Cultura canadense “as its finest” na estação de metrô (arquivo pessoal, 2014).

O PONTO PRINCIPAL de ir morar no exterior talvez seja o choque cultural. E embora muito se fale sobre isso, nunca vi um texto que descrevesse esse sentimento de forma justa. O sentimento de estar em uma cultura que não é a sua vai muito além do choque.

O choque cultural é fácil de experimentar: qualquer viagem de poucos dias pra um país diferente já provoca o susto de ver pessoas vivendo o corriqueiro de forma inusitada. Normalmente é divertido observar as diferenças culturais entre seu país e o outro. Você não precisa mudar seus hábitos, nem tentar entender tudo, nem sequer precisa discordar ou concordar com nada, porque você é um visitante. O choque cultural nessa situação é confortável e pode ser resumido basicamente em duas palavras: curiosidade e interesse.

Agora, quando falamos sobre viver em outro país, acredito que o termo “choque” não se enquadre. É claro que ao se deparar com os costumes diferentes o susto ocorre da mesma maneira, mas diferentemente de um choque, esse susto não passa rápido. Daí meu incômodo com a palavra. Resta ao estrangeiro se acostumar com o incômodo até que tudo pareça normal.

A intensidade desse estranhamento depende de quão diferentes e desconhecidos são os hábitos desse novo lugar. Imagino como deve ser a adaptação a países dos Emirados Árabes, por exemplo, em que a sociedade em si é construída de outra forma. Nesse ponto se mudar para o Canadá, que foi o meu caso, teve suas vantagens. Como a globalização cuidou de distribuir a cultura norte-americana em quase todo o mundo, já cheguei com boas noções da cultura e dos hábitos do país, o que certamente facilitou minha adaptação.

Mas é aí que está: embora seja possível evitar ou amenizar o susto inicial, ainda existe a sensação de não-pertencimento a essa cultura. Isso vai além do choque pois é algo que se percebe aos poucos, em pequenos acontecimentos do dia-a-dia, e resta a você se acostumar.

A cultura não vai mudar por causa de você, então você precisa mudar para se adaptar à cultura.

Nunca havia lido um texto na internet que me avisasse que saber a língua é só o primeiro passo pra saber se comunicar. Quando falamos português usamos determinadas palavras e nossas escolhas de vocabulário passam uma ideia sobre quem somos. Dois sinônimos podem ter significados sociais diferentes, e numa língua na qual você é novato (veja bem, tô falando além da fluência) você perde a noção de que sinônimo usar, que gíria usar, ou até que palavrão usar. Parece uma coisa pequena, porém imagine estar em uma roda de amigos e alguém começar a usar palavras inusitadas, mesmo que corretas? Soa estranho e anti-natural.

O mesmo acontece quanto ao modo como se faz amizades. Ou como são os relacionamentos. Como se comportar em público (não se demonstra afeto em público, aliás). Que tom de voz usar (sul-americanos costumam assustar os canadenses por serem muito “expansivos”). Quais comidas são mais consumidas em cada horário. Os programas que se faz com amigos (não me lembro da ultima vez que fui chamado pra um churrasco com cerveja na beira da piscina, aqui eles fazem churrasco de noite e na varanda de casa). Quais histórias deve-se contar, quais assuntos podem ser levantados sem constrangimento e quais temas devem ser evitados. Ou mesmo que piada fazer. Eu seria capaz de listar infinitos exemplos aqui.

Tudo é diferente, nos mais pequenos detalhes, e isso dá uma insegurança de não saber como se comportar, que imagem estamos passando, ou que imagem queremos/devemos passar. E do mesmo modo, pensar constantemente “o que será que ela(e) quis dizer com isso?” também passa a ser comum.

Ainda tem um agravante: eu não moro em qualquer cidade do Canadá. Eu moro em Toronto, uma das cidades mais cosmopolitas do mundo. Isso significa que a mesma ação feita por um indiano, um africano, um canadense e um mexicano podem ter significados completamente distintos. Aprender a lidar com uma chinesa não te ajuda a tratar com uma afegã, por exemplo.

É um processo de adaptação constante e interminável que, se por um lado é cansativo, por outro é enriquecedor pra cacete.

A parte que cansa, no entanto, é justamente culpa dos pequenos detalhes. Eles te lembram constantemente que você não é parte daquela cultura. Te obrigam a reaprender todas as regras não-escritas do convívio social, dos costumes, hábitos, tradições, conceitos, preconceitos. Não preciso cair no clichê de dizer que isso é ótimo, te faz crescer como pessoa e etc. Isso vocês já sabem.

O que quero mostrar é que não é como nos contam. É como sentir que estamos fora do lugar. Como se fôssemos uma peça que precisa se moldar pra caber sem chamar atenção. E olha que eu já me mudei de cidade dezenas de vezes, então mudanças não me assustam, mas ir pra outro país é uma experiência completamente diferente. Vai além de regionalismo. São novas formas de se relacionar, de ver o outro e de ver a si mesmo.

Porém vale a pena. Nesse processo passamos a questionar a nossa cultura ao invés da dos outros. Percebemos que é possível achar coisas em comum com todas as pessoas do mundo. Vemos que sul-americanos tem costumes muito mais parecidos do que imaginamos (e por isso é tão fácil pra um brasileiro se sentir à vontade perto deles). E, no fim, nada descreve a sensação de encontrar outro brasileiro por aí e, mesmo antes de falar qualquer palavra em português, ficar aliviado por saber o que dizer, como agir, o que não fazer.

Afinal eu amo o Canadá, mas se tem uma coisa que eu passei a ter mais certeza, é que não há cultura como a nossa.

Esta é a versão de um texto escrito em janeiro de 2014 e publicado originalmente no GoCan, que foi um diário do meu intercâmbio no Canadá.

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Igor Mariano
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Brasileiro, gestor de marketing, apaixonado por viagens, café, cerveja, livros e tudo que nos distrai • www.instagram.com/igor_mariano