Sobre viajar só — Breslávia, Polônia
Lembro de algum dia nos últimos anos da escola, quando as únicas viagens que eu havia feito foram com a família ou em excursões do colégio, quando eu nem havia pisado em um avião ainda. Nesse dia, eu comecei a rabiscar uma lista de cinquenta coisas que eu queria fazer antes de morrer. Talvez pela falta de ideias ou talvez pelo arrepio ao pensar que eventualmente eu completaria a lista e estaria pronto para morrer, nunca passei do item doze. E, entre esses itens, havia “estar só em um país onde eu não fale a língua”. Na época, duas coisas dessa frase me assustavam, “estar só” e “eu não fale a língua”.
Por ser muito introvertido, sempre tive problemas para conversar com estranhos e, na minha adolescência, a minha zona de conforto era estar perto de amigos e familiares. Então, o fato de ter que me comunicar com estranhos que falariam uma língua que eu não compreenderia soava como uma situação duplamente assustadora. Imagine um claustrofóbico que está em um lugar que não só é pequeno e fechado como vai diminuindo ainda mais. Eu me sentia mais ou menos assim. Mas, aquele item significava para mim encarar o medo e crescer. Não sei se eu realmente imaginava conseguir riscar aquela frase da minha lista, mas ela estava lá.
Dia 1
No começo de setembro de 2018, eu acabara de chegar na Polônia, em uma cidade chamada Breslávia. Estava na segunda metade de um mochilão pela Europa e, até então, em todas as cidades que eu havia visitado, eu conhecia alguém e estava acompanhado em boa parte do tempo. A primeira metade da viagem durava um mês e eu já tinha planejado no Brasil. Consistia basicamente em chegar em Madri e ir até Praga, parando nos países que estivessem no caminho (França, Bélgica e Alemanha). A segunda metade da viagem levaria mais um mês e eu iria planejar de acordo com o dinheiro que me havia sobrado, sendo que começaria e terminaria em Praga, de onde saía o meu voo de volta para o Brasil. E aí, fora a própria Praga, só me restaria visitar cidades onde eu não conhecia ninguém.
Por recomendação de uma amiga, a primeira dessas cidades foi a Breslávia. O objetivo principal na Polônia era visitar Auschwitz e a Cracóvia (a cidade grande mais próxima do campo). A Breslávia ficava no topo de um triângulo imaginário que formava junto com Praga e a Cracóvia, então seria também uma maneira de dividir a viagem de ônibus de sete horas em duas viagens de quatro horas.
Assim que comprei a minha passagem para a Breslávia, lembrei da minha lista de coisas para fazer antes de morrer. Quase que sem querer, eu estava riscando aqueles itens pouco a pouco. Mas, dessa vez, eu não tinha mais medo de completar a lista. Muito porque um dos itens era fazer bungee jumping e eu já me conformei que nunca terei coragem de riscar isso da lista.
Sobre a cidade, ela é conhecida principalmente por ser uma das mais bem preservadas de uma Polônia que foi destruída na Segunda Guerra. Então, é uma das melhores maneiras de ver um lado mais histórico do país. Outra coisa pela qual a cidade é conhecida é a presença de mais de duzentas esculturas de anões espalhadas pelo centro histórico. Eles são um símbolo anticomunista da cidade e motivo de orgulho local, já que, logo após o nazismo, a Polônia foi assolada pelo regime comunista soviético.
Tomei o ônibus para a Breslávia e, quatro horas depois, estava lá. Quando desço na estação, já começa o choque de realidade. O alfabeto polonês é bem similar ao nosso, mas com vários tracinhos estranhos em cada palavra, o que me deixa completamente sem ideia de como cada coisa é pronunciada. Eu sempre tento aprender a falar ao menos por favor, obrigado e a pedir uma cerveja na língua local, mas quando traduzi isso para o polonês e ouvi a pronúncia no celular, tudo me pareceu impossível demais para eu sequer tentar. Era como se a minha língua precisasse fazer movimentos que ela não estava pronta para fazer.
Saquei dinheiro local em um caixa automático qualquer e saí da estação para deixar a minha mochila e ir me aventurar na cidade. Era fim da manhã e eu ainda conseguiria aproveitar o meu primeiro dia por lá. A primeira coisa que me chama a atenção é a parte de fora da estação com uma arquitetura mais clássica que esconde um interior moderno.
Apesar de a Breslávia não ser uma cidade pequena, a sua parte turística está bem próxima do centro, por isso, a estação que eu desci é bem próxima do hostel que é bem próximo da praça principal que é próxima de quase todos os outros pontos turísticos. Fui caminhando para deixar a minha mochila no hostel (ainda era cedo demais para fazer o check-in) e segui para a praça, sempre observando tudo muito bem, tentando achar os anões. Procurar essas esculturas também ajudava a me fazer prestar atenção nos detalhes da cidade, o que muitas vezes eu não faço.
Chegando na praça principal, vejo toda a vida que acontece nela em uma manhã de sábado. Turistas tirando fotos com as poses de sempre, idosos sentados em bancos para bater-papo, pais e mães passeando com seus filhos, jovens andando de patinete ou bicicleta ou gente apenas caminhando e aproveitando toda a história ao redor daquela praça, entre prefeitura e outros prédios históricos. O céu estava nublado mas sem parecer muito ameaçador. Apesar de não ser tão fotogênico, ajudava a deixar a temperatura mais amena.
Mais ou menos às duas da tarde, eu senti fome e parei em um restaurante qualquer para almoçar. E essa é uma das melhores coisas de viajar só. Como quando sinto fome, durmo quando sinto sono, acordo quando me sinto disposto e vou aonde eu quiser. Existe uma sensação de estar livre do relógio.
Acabei o meu almoço e segui a minha caminhada da praça central até a universidade local, a biblioteca pública e algumas ilhazinhas que ficam bem no centro da cidade, com parques, bares e esculturas. Talvez seja interessante dizer que eu me entedio facilmente, então não passo realmente muito tempo observando todos os detalhes dos locais onde visito. Isso muitas vezes me deixa estressado quando tenho que esperar outra pessoa terminar de ver tudo enquanto eu quero ir embora e não posso falar nada para não estragar a experiência de quem está comigo. Assim, quando estou viajando só, acabo fazendo roteiros muito mais rapidamente do que o normal e sempre me sobra tempo. Por isso, aproveitei para ir ao jardim botânico local, coisa que quase nunca faço, mas já que ele estava bem perto, resolvi dar uma volta.
No caminho, percebo que a arquitetura meio avermelhada de várias construções junto com o céu nublado dão um charme especial à cidade. Às vezes, um céu nublado deixa tudo mais bonito. Bem, talvez não em um jardim botânico.
A parte de ver plantas em si não me interessa muito, devo confessar, e, provavelmente, seria uma péssima ideia eu ter ido ao jardim com alguém que se interessasse e fosse passar muito tempo olhando cada uma das milhares de plantinhas de todo o mundo que estavam lá. Para mim, bastou uma olhada rápida e aproveitei para ver mais os jardins e laguinhos.
Saindo de lá, dei mais uma volta ao redor das ilhotas, que são cercadas de igrejas, prédios históricos e umas pontes charmosas. Então, voltei para o hostel para finalmente fazer o check-in.
Já estava perto de anoitecer e eu havia visto tudo o que eu queria nesse primeiro dia. Assim, só tomei um banho e fui jantar alguns pierogis tomando vinhos e cervejas locais. Veja bem, não sou de esbanjar quando viajo, mas dou uma ajeitada no orçamento e deixo de visitar algumas atrações para evitar ter que comer McDonald’s para economizar dinheiro. Assim, posso comer pratos típicos e tomar umas cervejas locais tranquilamente.
Acabei o meu jantar, voltei para o hostel, aproveitei para ler um livro até pegar no sono. Não sou muito de interagir com outras pessoas em um quarto de hostel. Cumprimento, respondo se falam comigo e até puxo papo quando puxam papo antes, mas, explicando como funciona o cérebro de alguém tímido como eu, sempre fico com receio de a outra pessoa estar interagindo apenas por educação e eu acabar sendo inconveniente. Por isso, quase nunca tomo a iniciativa.
Dia 2
Acordo no dia seguinte sem despertador e sem estar atrasado para nada. Boa parte da minha lista de coisas para ver havia sido riscada no dia anterior, então, eu posso aproveitar esse domingo para fazer o que as pessoas fazem de melhor no domingo: viver devagar. Era por volta das nove horas e eu fui tomar um banho para ajudar com a disposição. Deixo a minha cama arrumada (nada melhor do que chegar cansado, tomar banho e não precisar arrumar nada) e parto rumo ao Jardim Japonês, que fica a leste do centro da cidade. Um leste longe o bastante para que os pés não dessem conta de chegar lá em um tempo razoável.
Apesar de eu ter podido confiar no Google Maps para indicar quais as rotas de transporte público eu deveria seguir em quase todas as cidades em que eu estive, na Breslávia, ele não indicava. Então, pedi direções no hostel com o meu inglês cansado e segui até a parada de bondes (a cidade não tem metrô, mas tem uma malha de bondes que conectam boa parte dos lugares). As passagens eram compradas em uma máquina que tinha o inglês como opção, então não tive problemas. Depois disso, busquei a linha que o atendente do hostel havia me indicado e segui até o jardim.
Chegando lá, o bonde para bem de frente a uma grande estrutura de concreto que eu não consegui exatamente posicionar dentro de um espectro que vai entre impressionante e estranha. Era o Salão Centenário, que eu acabara de encontrar por acidente. Uma boa surpresa. Atrás dele, havia a melhor parte de um domingo: feiras de comida. Aparentemente, uma corrida ao redor de uma lagoa que fica atrás do salão havia acabado de acabar e todas as pessoas que haviam corrido estavam com suas famílias lá, atrás de um brunch.
Como estava muito cheio e eu não estava com fome (depois de um tempo viajando, você acaba aprendendo a comer quando tem fome e não quando o relógio diz), segui direto para o Jardim Japonês. Também queria aproveitar o Sol das dez horas, que combina muito mais com um jardim do que o Sol de quase meio dia.
Foi a minha primeira experiência em um jardim estilo japonês e, claro, sei que, assim como o sushi, ele vai ser um tanto diferente do que no Japão. Ao menos, não havia cream cheese em lugar nenhum. E, não sei o quão tradicional era esse jardim, mas foi um belo jeito de passar uma hora do meu domingo. O céu aberto com o Sol fraco aumentaram o charme do lugar. Aquele momento mágico não deve ter atingido só a mim já que, apesar dos turistas, não havia nenhuma gritaria, todo mundo estava calado e apreciando tudo aquilo. Tentando escutar o barulho das pequenas cascatas de água, dos pássaros cantando, das árvores timidamente balançando com o pouco vento. Isso me soa como um bom domingo.
Quando me senti revigorado e com o estômago já pedindo o café da manhã às onze, voltei para a feira de comida e pedi um cachorro-quente com uma bela linguiça artesanal local. Os europeus em geral são bem conhecidos pelos seus embutidos e há de se respeitar as linguiças polonesas. O cachorro-quente era basicamente pão, linguiça, cebola frita e mostarda. E não precisava nada mais que isso.
Comi devagar, aproveitando para olhar as pessoas indo e vindo. Ninguém de cabeça baixa, ninguém com pressa. Passam observando os detalhes de um lugar aonde já devem ter vindo várias vezes, mas que acredito que sempre aproveitam para redescobrir. Mães, pais, filhos, casais, idosos, todos tirando um dia para se desconectar. A magia do domingo.
Voltei para o centro da cidade para subir uma torre de onde eu teria uma bela vista aérea. Normalmente evito grandes subidas a pé, mas, depois de algumas práticas, eu me sentia cada vez mais corajoso, mesmo que sempre me arrependesse na metade. Vamos lá, vou tentar dar alguns motivos para não subir as escadas de uma torre na Europa.
Primeiro, lembre-se que essas torres são bem antigas, então muitas vezes os degraus vão estar gastos e desnivelados. Também vão ser bem apertadas, então, se uma pessoa estiver descendo enquanto você está subindo, alguém terá que se espremer no canto para o outro passar. Além disso, lá em cima não vão existir máquinas nem ninguém vendendo água para ajudar a recuperar o fôlego. Dito isso, a vista aérea da parte histórica de qualquer cidade é sempre deslumbrante. E é por isso que eu sempre acabo ignorando todos os outros motivos e subo essas torres. A não ser que haja uma opção com elevador. Aí eu pego o elevador.
Mas essa torre só tinha escadas. Então, cheguei ao topo já esbaforido e recuperando o ar enquanto apreciava o belo centro da Breslávia visto de cima. “Os mais de… cem… degraus valeram… a pena” disse para mim mesmo encaixando as palavras entre as baforadas de ar que eu soltava para tentar recuperar a respiração normal.
Sentei em um banquinho de madeira encostado em uma parede de tijolos para beber da água que eu sempre levava comigo e pensar no que eu iria fazer no restante do dia. Eram umas três da tarde e, apesar do café da manhã tardio, eu já estava pensando no almoço. Perto dali, havia um local barato, com comida tradicional e cerveja. Aquilo me pareceu uma boa ideia. Então, desci e fui atrás de um resto de tarde tranquilo.
Pedi alguma coisa que não lembro o nome (mas que provavelmente eu não consegui pronunciar e pedi apontando para o nome escrito na parede), mas era um patê feito de banha de porco e uma farofa de torresmo que vinha acompanhado de pão, picles e mostarda. Apesar de usar banha de porco como patê ter soado como uma ideia estranha, aquilo parecia ornar muito bem com cerveja e resolvi arriscar.
O pão era de supermercado, meio seco. A mostarda era daquelas baratas. O picles era razoável e a banha com torresmo realmente era bem gordurosa. Mas, estranhamente, aquela mistura toda descia bem. E ia ficando melhor a cada gole de cerveja.
Esse bar ficava em uma praça e, como estava vazio, eu consegui um lugar na área externa, onde eu poderia tomar uma cerveja sentindo a brisa no rosto e vendo as pessoas passando.
Esse era o resto do meu último dia na Breslávia. Tomar uma cerveja até não querer mais, voltar para o hostel, tomar um banho, sair para jantar quando sentisse fome, arrumar a mala para seguir viagem quando acordasse e dormir. Sem nenhum compromisso com ninguém, fazendo as coisas quando sentisse vontade.
Epílogo
No caminho de volta para o hostel, fiquei pensando que parei de me pressionar a conhecer pessoas quando não me sentisse confortável. Talvez seja um problema. Eu passei a vida toda enxergando isso como um problema. Aliás, acho que eu vejo desse jeito ainda hoje. Mas é um problema com o qual eu aprendi a conviver e do qual não tenho mais pressa de me livrar.
Caminhando uma última vez pela praça principal, finalmente encontrei uma daquelas esculturas de anão. Estava lá empurrando uma bola de pedra gigante. Imagino que mal conseguia movê-la, mas continuava tentando, talvez avançando poucos centímetros a cada esforço. E ver que aquela pedra já não estava mais no mesmo lugar em que estava alguns momentos atrás era o que o fazia seguir empurrando.
Talvez eu fosse do mesmo jeito. Empurrasse a minha timidez para fora do meu caminho, pouco a pouco, mas sem pressa, sem me pressionar.
Foi aí que percebi: aquele anão era eu.
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