SXSW 2018 ou “O problema com diários de viagem”

João Luis Jr.
Revista Passaporte
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3 min readMar 6, 2018

Uma verdade universal porém secreta da raça humana é que se você não se chama “Gulliver”, nenhum outro ser humano tem real interesse em ler sobre as suas viagens. Alguns amigos vão ler por cortesia, familiares vão dar um like - sem clicar no link - em prol da sua autoestima e, mesmo caso você seja um autor bem sucedido de livros de viagens ou um apresentador muito conceituado de programas de turismo, por trás de cada sorriso, cada aceno, cada elogio, se esconde o rancor natural que o ser humano tem de cada pessoa que está viajando, passeando, provando comidinha bonita, enquanto ele está trabalhando, recebendo telefonema da NET, vendo que na caixa postal tem um recado mas quando você abre é da operadora de celular falando que você deve uma conta que você já pagou e ainda custou 50 centavos pra ouvir aquela mensagem.

“Vamos falar sobre uma viagem IRADA?”

Existe a sede por informações e experiências de outros que ajudem as nos orientar nas nossas? Claro que existe. Saber em quais bairros a pessoa foi roubada te ajuda a não ser roubado, saber em quais restaurantes ela foi destratada reduz a sua chance de sofrer a mesma coisa, saber que aquilo naquele museu é um mictório e não um bebedouro vai provavelmente te poupar algum constrangimento.

Mas ao mesmo tempo existe a total e completa individualidade da experiência de viagem — para alguns a mudança da guarda do palácio de Buckingham é uma experiência indescritível, para outros é apenas a mais demorada e cansativa troca de turno de porteiro que a humanidade já concebeu — assim como a realidade de que uma parte significativa dos relatos tem menos a intenção de informar alguma coisa e mais um intenso interesse em mostrar como a pessoa que está realizando o relato é legal, gosta das melhores coisas, conhece os melhores lugares, tem os melhores amigos e fica ótima de gorrinho/roupa de banho.

Por isso a experiência do relato pessoal de viagem é sempre um pouco problemática. Onde termina a informação e começa a vaidade? O quanto de uma experiência de viagem pode ser universal e o quanto é apenas a visão de cada indivíduo? Quantas pessoas em média desejam que você seja atacado por uma arraia se você postar fotos direto da praia no seu Instagram durante um dia útil em que no Brasil ainda são 15:30? São questões complexas e que eu sinceramente não acredito que serão encerradas tão cedo, por mais que eu possa garantir que a resposta para a terceira seja algo próximo de “no mínimo 10 pessoas, cara”.

“Eu já te contei daquela viagem que eu fiz nas últimas férias?” — “CARALHO, GULLIVER, SÓ FALA DISSO, PARECE QUE NUNCA VISITOU UMA ILHA DE GIGANTE, UMA ILHA DE GENTE PEQUENA, UMA ILHA DE CAVALO NA VIDA”

Mas ainda assim, gostamos de contar sobre nossas viagens. Porque a vaidade é maior do que a clara percepção de que ninguém tá interessado, porque com a ascensão da câmera digital tiramos 700 fotos em dois dias numa cidade do interior e alguém vai ter que arcar com as consequências disso, porque você realmente adorou aquele restaurante e dane-se se tem um igual ali perto do Largo da Carioca, você vai escrever sobre ele. Porque se uma árvore viajar de férias e não tirar uma foto ou escrever um post no Facebook sobre a viagem, como as outras árvores vão saber que ela está bem de vida e podendo pagar essa viagem e por sinal olha esse passeio de barco que linda essa paisagem?

E por isso, por motivos que giram entre vaidade pessoal e recomendação do terapeuta, irei começar nessa semana um diário de minha viagem ao festival SXSW, a ser realizado em Austin, no Texas, onde viverei as melhores experiências, nos melhores lugares, comendo as melhores coisas, em companhia de amigos que obviamente são as melhores pessoas. Ou isso ou apenas teremos um longo relato de duas páginas sobre como fui barrado no aeroporto por parecer muçulmano. De qualquer maneira, espero ficar ótimo usando gorrinho durante toda essa experiência.

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João Luis Jr.
Revista Passaporte

quando eu tinha 10 anos uma professora disse que eu escrevia bem. até hoje estamos lidando com as consequências desse mal-entendido