Torta de memórias

Fernanda Prestefelippe
Revista Passaporte
Published in
3 min readJun 14, 2018

Investi dias pesquisando a melhor receita. Analisei comentários em blogs e perfis do instagram. Queria reviver cada detalhe daquela memória gastronômica italiana da forma mais original possível. Comprei todos os ingredientes, encomendei outros, fui para uma cozinha grande e bem equipada. Me certifiquei que estaria sozinha e sem pressa.

Tudo certo, vou cozinhar.

A Pastiera Napoletana é uma receita original da região de Nápoles. Uma torta doce com base de ricota, tradicionalmente feita na Páscoa. Garanto: não experimentei nada que se compare a essa torta durante todo o tempo que estive na Itália. Eu sei, é uma afirmação audaciosa quando se refere a uma das culinárias mais incríveis do mundo. Mas era simplesmente deliciosa!

O dia que a benedetta torta cruzou o meu caminho foi especial. Recém chegada na Itália, estava vivendo um sonho: morar numa fazenda e camping, com o verão começando, e no ar uma mistura de barulho de mato, garrafas de vinho e risadas.

Um casal que se hospedava no local se aproximou e ofereceu um pouco do doce que haviam feito mais cedo para comemorar o feriado. Notem que a iguaria nasceu em condições anormais de temperatura e pressão. Leia-se numa cozinha de motorhome.

O marido se apresentou como o chef (tem algum italiano que não seja?) e nos contou que estava querendo abrir um restaurante em sua cidade no sul da Itália. Fez questão de listar todos os ingredientes usados, a procedência — importantíssimo — e o modo básico de preparo. O resultado foi uma briga pelo último pedaço! E naquele momento eu soube que toda vez que alguém me perguntasse minha sobremesa favorita, não conseguiria responder outra coisa que não fosse a Pastiera.

Um ano depois, ao repetir a receita, lembrei de cada pedaço daquele dia. Da cara de satisfação do cozinheiro observando a euforia de seus novos fãs, das pessoas ao redor da mesa, da mistura de inglês com portunhol-italiano, das conversas e da felicidade. Sem contar o queijo e o prosciutto. Palmas para os italianos, que sabem mesmo como aproveitar a vida de forma simples.

Depois de horas misturando os ingredientes e sujando o avental, senti o gosto da mais completa frustração. E prometo a vocês que o sentimento foi muito além da minha habilidade com a batedeira. O resultado em nada parecia com o original. O sabor era diferente, a aparência era diferente, e o mais importante de tudo, a experiência foi diferente. A minha família tentava encontrar no prato de sobremesa pós-churrasco de domingo um pouco da minha excitação ao falar do doce. Mas nitidamente não encontravam. Eles não estavam lá pra entender.

Foi então que a minha ficha caiu: não dá pra reviver uma memória assim tão poderosa. Ela só existe daquele jeitinho na nossa cabeça e, com sorte, no nosso coração. Mesmo que tudo esteja igual, tudo está diferente. O cenário, o cheiro, a energia. E, claro, você.

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Fernanda Prestefelippe
Revista Passaporte

Actually, the best gift you could have given her was a lifetime of adventures. Instagram @feprestefelippe