Tour para atenuar tempestades

Annamaria Marchesini
Revista Passaporte
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4 min readAug 22, 2018

Um jeito caseiro e gratuito de viajar para amenizar dias difíceis.

Quando a cabeça não está boa e a nuvem cinza insiste em despejar raios acima de meus cabelos, ultrapasso a fronteira entre a sala e meu pretenso escritório e embarco numa viagem pelos livros. Esta mania surgiu há muito tempo quando minha irmã mais nova perguntou se eu já havia experimentado abrir livros ao léu e, de olhos fechados, apontar para um ponto da página e depois ler o que aquelas palavras me diziam. Acho que até há um nome para isso, mas esqueci agora. Comecei a experimentar e percebi que sempre que procurava os livros desta forma, meu estado de espírito não estava dos melhores, mas a tempestade acabava se dispersando depois que minha atenção se concentrava no que suas frases estavam tentando me dizer.

Na segunda-feira acordei de maus bofes. Não sou mal-humorada. Realmente, nos raros momentos em que me identifiquei tomada pelo mau humor, a sensação era de que estava doente. Sou “intrinsecamente feliz” (ouvi isso há anos e não esqueci) e bem-humorada na última. Tudo isso reforçado por um otimismo raras vezes derrotado e uma fé absurda. Mas, de vez em quando, a tal nuvem se aloja sobre mim e passo o dia tentando entender o motivo pelo qual me escolheu como estacionamento e o que fazer para afastá-la. A técnica dos livros geralmente funciona. Então recorri a ela.

Ao entrar no escritório dei de cara com “Robert Frost Selected Poems”, edição dos anos 80, da Penguin, com introdução do crítico literário inglês Ian Hamilton. O livro saltou aos meus olhos, mas escolhi a página que queria: a 77, onde está o poema “The road not taken”. De certa forma, sempre que o leio, acho modestamente que minha vida meio que se encaixa naqueles versos e quase chorei quando li as últimas linhas — “Two roads diverged in a wood, and I — I took the one less traveled by, and that has made all the difference”. (Poema original e traduzido neste link: https://www.letras.mus.br/lyriel/the-road-not-taken/traducao.html ).

Não pensem que sou uma intelectual. Nada disso. Leio por prazer e, infelizmente, às vezes passo muito tempo sem conseguir engatar em um livro, sabe Deus o motivo. Mas quando volto a eles, saboreio as histórias como se fosse uma degustação de bons vinhos. Deixei Frost e corri os olhos nas prateleiras para escolher o próximo livro. Fiquei tentada em pegar a “Obra Poética de Fernando Pessoa” ou o “Poesia e Prosa”, de Drummond. Mas declinei para buscar uma obra “menos percorrida”. Puxei o “Memórias, Sonhos, Reflexões”, de Jung, que abri inadvertidamente. Meu dedo apontou para esta frase: “Ignorava ainda que tipo de sensação provocara em mim a visão do caçador escuro e solitário. Sabia simplesmente que seu mundo era o meu há incontáveis milênios”.

Ainda não li este livro e, portanto, não sei o contexto deste parágrafo. Neste meu passeio literário para acalmar a alma, geralmente me prendo apenas no que as frases me dizem, ignorando a situação em que estão colocadas. Aquelas duas sentenças de Jung, de alguma forma, se encaixaram no meu estado de espírito da segunda e fiquei algum tempo apenas percebendo a sensação de reconhecimento que me proporcionavam.

Ao lado do livro de Jung estava outro que, para quem não o conhece, parece um cadernão do tipo Moleskine. Eu o conheço bem e ele tem um significado enorme para mim por motivos muito pessoais. É o livro do fotógrafo, escritor e palestrante inglês Henry Carroll, “Use this if you want to take great photographs”. Fotografia é um assunto que me interessa. Quando o abri, uma das páginas dizia “Tire uma foto que sussurra” e, a outra, “Tire uma foto que grita”. Pensem o que quiserem, mas aquelas frases fizeram sentido para mim, naquele momento, com outros significados, bem além do que Carroll realmente quis dizer.

Terminei meu périplo com “O Óbvio Ululante”, de Nelson Rodrigues, torcendo para que meus dedos apontassem um trecho que sempre me vem à mente, sobre afetos e amores. Mas não. Abri na última página da crônica “Os intelectuais corajosos”, escrita em 23/4/1968, que termina assim: “Chamado a assinar um manifesto de escritores, esbravejou: — “Não sou escritor. Sou uma besta”. E, como o colega insistisse, berrou de dedo na cara: — “Escritor é você! Você! ”. Nelson, (é como eu o trato na intimidade de meu lar) mais uma vez você me pegou. Os dias passam e ainda estou pensando sobre suas palavras. Bom, independente do recado que ele me mandou, o método deu certo. Passei a segunda-feira com a alma mais leve e nem insônia tive. Experimente. É bem bom.

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Annamaria Marchesini
Revista Passaporte

Sobre lugares por onde passo e outras coisinhas mais. Afinal, tudo é viagem. As fotos são minhas, para o bem e para o mal.