TRÊS SEMANAS NO IRÃ

Antonio Carlos Boa Nova
Revista Passaporte
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11 min readDec 7, 2022

Vibração de alguns, desassossego de outros, surpresa geral. Assim reagiram os amigos quando contamos que viajaríamos para o Irã, destino turístico pouco habitual. Odete e eu, porém, mantivemos o propósito de ir em frente. Já dizia Saadi de Shiraz, poeta persa do século XIII: “Por que sofrer como um pássaro de gaiola doméstica quando se pode passar dias a voar como um pombo?”

No quente e seco outubro, Odete e eu passamos três semanas no país. Sozinhos, desvinculados de grupos, mas contando com agentes locais para reservas de hospedagem, transporte e outras providências.

Devido às sanções contra o país, cartões de crédito internacionais não funcionam lá; levamos dinheiro vivo. Mas dá para conseguir cartão de débito válido no Irã, e foi o que encomendamos antes de embarcar. Assim, no primeiro dia em Teerã, veio ao hotel um funcionário da agência: entregou-nos os cartões, informou as senhas e recebeu nosso depósito em euros. Garantindo que já no dia seguinte poderíamos usar os cartões, rabiscou um recibo em folha de caderno. A informalidade nos espantou, mas não houve problema. Nas semanas seguintes, teríamos outras demonstrações da exemplar honestidade iraniana.

Com 10 milhões de habitantes, Teerã não é muito bonita: poluição, trânsito congestionado e caótico, raros semáforos. Atravessávamos a rua como os locais, metendo-nos entre os carros e motos. É aventura que pede nervos firmes e serenidade de monge; um bom trago também ajudaria, só que os aiatolás não deixam.

Mas existem atrações, como o Palácio de Golestan, principal monumento histórico da cidade. Construído há 500 anos, teve diversas remodelações, e a forma atual data do século XIX, quando ali residiu a família real, da dinastia Cajar. Registrado pela Unesco como patrimônio da humanidade, faz uma bem-sucedida integração entre antigas artes persas e arquitetura ocidental.

No Palácio de Golestan, a Galeria dos Espelhos.
Ainda a Galeria dos Espelhos.
Mais detalhes da decoração do palácio.

Outro marco é a “Borj-e Azadi” (Torre Azadi), erguida em 1972, nos 2.500 anos do primeiro Império Persa. Projetada por Hossein Amanat, então um jovem arquiteto iraniano, tem a forma de Y invertido, e seus arcos evocam o estilo das mesquitas. Com 45 m de altura, é revestida em mármore, recurso abundante no país. No interior, há lojas e salas de exposições. Fora, um amplo espaço para espairecer e tirar fotos — às vezes, palco de protestos.

“Selfie” com a Torre Azadi.
“Selfies” contagiam.

Certa noite, fomos à Ponte da Natureza, longa passarela de pedestres que liga dois parques e serve de área de lazer. Muita gente flanava alegremente. Pequenos grupos faziam piquenique — hábito que é verdadeira instituição nacional, conforme observaríamos nos parques que visitamos.

Com 270 m, a Ponte da Natureza atrai passeadores noturnos.
Flanando na Ponte da Natureza.

No balanço geral, a viagem saiu em conta. Na comparação com o Brasil, são baratos os hotéis, restaurantes, transportes, artigos de lojas… Já nos táxis (frequentemente, calhambeques), o problema não era preço, mas tratar com motoristas que só falavam persa. Acabávamos por entender-nos.

Nosso hotel ficava perto do metrô, que é eficiente, limpo e baratíssimo — aliás, as cidades iranianas que conhecemos têm limpeza impecável. Tomaríamos muitas vezes o metrô de Teerã, e o mesmo faríamos em Tábriz, Esfahan e Shiraz.

Última estação no sentido norte, quase ao pé dos Montes Alborz, o bairro de Tajrish tem comércio movimentadíssimo, com tentadoras pechinchas. Zanzamos ali, deliciamo-nos com suco de romã, passeamos no parque e fomos conhecer a mesquita. Para Odete poder entrar nas dependências, não bastou o véu muçulmano, envergado desde a chegada ao país: precisou cobrir o corpo inteiro com o xador (que emprestam na recepção).

De xador…

Ao fundo, notam-se retratos de jovens. Iríamos vê-los em todas as cidades. São os “mártires”, abatidos na guerra contra o Iraque (1980–88): voluntários mal saídos da adolescência, eles avançavam sobre campos minados, fazendo detonar os explosivos onde pisavam e atraindo o fogo inimigo. Pessoas com quem conversamos lamentaram o absurdo daquela guerra.

Poucos dias antes da viagem, haviam começado manifestações protestando contra a morte de uma moça detida sob a acusação de não usar devidamente o véu. Chegaríamos a ver diversos buzinaços.

Certo dia, tivemos que desistir da visita a um museu: ligado à universidade estatal, fora provisoriamente fechado pelas autoridades. Consultávamos o GoogleMaps na calçada, quando duas iranianas de véu longo — mãe e filha — ofereceram-se para ajudar. Dissemos que queríamos pegar o metrô na direção do Grande Bazar. Ponderaram que seria melhor um táxi, resolveram acompanhar-nos até lá e não nos permitiram pagar a corrida.

No trajeto, havia aglomerações, gritos, pneus queimados, lixeiras reviradas, soldados brandindo armas… Quem protestava eram sobretudo estudantes, mas não exclusivamente. Na calçada, vi uma senhora sem véu manifestando-se.

Na área do bazar, mal descemos do táxi e já nos vimos no meio de correrias enquanto escutávamos tiros (para cima?). Saímos em disparada, e devo ter batido o recorde dos 100 m na minha faixa etária. Acabamos abrigados numa loja que tinha a porta meio rebaixada. Após uns 20 minutos ali, nossas duas protetoras nos despacharam de táxi rumo ao hotel.

Dias depois, no final da viagem, um atentado causou 15 mortes no renomado santuário de Sayed, em Shiraz. Estávamos na cidade e pretendíamos visitá-lo naquela tarde. Dissuadidos, porém, pelo calorão, deixamos para o dia seguinte…

Nossa segunda cidade foi Tábriz, no norte do país. Lá, foi especialmente agradável passear no Parque Elgoli: amplo, bonito, bem cuidado, atrai muitos frequentadores.

Em Tábriz, o Parque Elgoli

Marcada pela aridez do território, a cultura iraniana tem milenar apreço pelas áreas verdes, espaços privilegiados que evocam o Jardim do Éden. Em persa, “paradeiza” significava um parque ou jardim protegido por muro; daí, através do grego e do latim, nossa palavra “paraíso”. Nas cidades iranianas, contemplaríamos a beleza de vários desses parques e ali passaríamos gratificantes momentos. Alguns deles aparecem nas ilustrações que seguem.

Em Kashan, o “Bagh-e Fin”, com ciprestes e cedros de 500 anos. De uma colina próxima, flui a água cristalina que circula no parque.
No fundo do “Bagh-e Fin”, o pavilhão com vitrais.
Em Esfahan, piquenique no parque.
Em Yazd, o “Dowlat Abad”, do século XVIII. Um canal de 65 km provê o abastecimento de água. Ela é depois levada a uma sucessão de espelhos d’água, um deles revestido de mármore.
Em Shiraz, o charmoso “Bagh-e Naranjestan”, com laranjeiras alinhadas no espaço central. São laranjas azedas, destinadas a perfumar o ambiente, como as que os árabes levaram para a Andaluzia.

Fizemos passeios para conhecer atrações dos arredores de Tábriz, como o Lago Úrmia, de água salgada, a Igreja de Santo Estêvão e um antigo caravançará. Fomos também ao vilarejo de Kandovan, onde “cavernas” escavadas na montanha são habitadas desde tempos pré-islâmicos; lugar de gente gentil, não como os trogloditas daqui…

Um dos maiores lagos salgados do mundo, o Úrmia está reduzido a 10% do que já foi — consequência das secas e da má gestão ambiental. Questionado, o governo lançou programas para reverter a tendência, mas os resultados ainda vão demorar.
Na encosta da montanha, a Igreja de Santo Estêvão. Ali havia um mosteiro da Igreja Ortodoxa Armênia.
Segundo lendas, o apóstolo S. Bartolomeu teria erigido o primeiro local de culto onde depois se construiu a Igreja de Santo Estêvão. Mas as ruínas do antigo templo são do século XIV.
Na antiga rota da seda, os caravançarás eram estalagens onde os viajantes pousavam com camelos e mercadorias. Tencionando promover o turismo, o governo iraniano os vem reformando.
Vista parcial de Kandovan, com suas habitações escavadas.

De volta a Teerã, seguimos para o centro-sul, começando por Qom, cidade sagrada que anualmente recebe milhões de peregrinos. Eles vão visitar o santuário de Fátima Al-Ma’suma, personagem da história islâmica que viveu no século VIII e, depois de perseguições e sofrimentos, morreu em Qom.

Santuário de Fátima Al’Másuma.

Muita gente circulava no pátio do santuário, e não faltou quem viesse saudar-nos, puxar conversa, convidar para “selfies”. Foi assim na viagem inteira. Sociável, simpático e prestativo, o iraniano tem muita curiosidade pelos estrangeiros. A toda hora, perguntavam-nos: “Where are you from?”.

Mesquita Imam Hasan.

Naquela noite, no restaurante onde fomos jantar, conduziram-nos a um tablado revestido com tapete (persa, evidentemente!). Não havendo mesa nem cadeiras, tiramos os calçados e sentamo-nos no tapete. Como em vários outros restaurantes, nada de menu em língua ocidental; e tudo em caracteres árabes, escrita adotada no Irã. A sorridente garçonete só falava persa. No celular, pelo “site” do restaurante, começamos então a examinar as fotos dos pratos, até que apareceu um gerente falando bom inglês. Saboreamos excelentes costeletas de cordeiro.

De Qom, fomos para Kashan, que por séculos se destacou na tapeçaria, cerâmica e produção de azulejos. Hoje, o principal charme da cidade é a água de rosas, tradicional produto iraniano. Na epopeia “Shahnameh”, escrita há mais de dez séculos pelo poeta Ferdowsi, é o lendário rei Jamshid quem introduz no mundo o uso de perfumes, “como benjoim, cânfora, almíscar, sândalo, âmbar e água de rosas”. Mas ela também se bebe, e as garrafinhas estão pela cidade inteira.

Da antiga riqueza dos mercadores, Kashan preserva muitos palacetes, alguns abertos à visitação como museus. São registros da história arquitetônica do país e do requinte das camadas ricas. Uma constante é o pátio interno, tendo ao centro um espelho d’água, de modo a amenizar o calor

Antigo palacete em Kashan, com o pátio interno disposto no subsolo, para melhor conforto térmico.
Pasmos com o requinte do palacete...

No bazar de Kashan, sabendo que procurávamos certa confeitaria, um jovem casal se ofereceu para nos levar lá. Enquanto conversávamos, eles nos convidaram para irmos, na noite seguinte, jantar em sua casa. Na ocasião, também com a presença de outros familiares, pudemos desfrutar a hospitalidade iraniana.

A cidade seguinte foi Esfahan, onde fica a praça mais bonita que já vi, a “Naqsh-e Jahan”, do século XVII. Ao inaugurá-la, o xá Abbas, o Grande, quis marcar a importância da cidade, então capital persa. No imenso espaço (512 m x 163 m), disputavam-se antigamente partidas de polo, e ainda estão lá os pilares que serviam de traves.

Em Esfahan, a “Naqsh-e Jahan”
Anoitecer na praça.
O “Kakh-e Ali Qapu”, palácio imperial.

Com seus jardins e chafarizes, as arcadas em volta e sobretudo as joias arquitetônicas que a cercam — duas mesquitas, um palácio imperial e o portal que leva ao bazar — , a praça encanta os visitantes e também atrai moradores para o “footing” no cair da tarde. Localizada em uma das extremidades — mas na diagonal, a fim de apontar para Meca — , a Mesquita Shah figura entre os prédios mais famosos do Irã. Obra-prima da arquitetura persa, chama a atenção pela beleza dos mosaicos.

Mesquita Shah.
Pátio da mesquita.
Detalhes dos mosaicos.

Na outra margem do rio, o bairro armênio de Jolfa tem a catedral cristã ortodoxa e seu pequeno museu. Contando hoje cerca de 6.000 pessoas, a comunidade armênia originou-se de uma imigração forçada que ocorreu no século XVII. Quando visitávamos a catedral, uma moça entregou-me um papelzinho com caracteres arábicos e foi embora. Mostrei-o a uma guia turística e pedi que traduzisse. Estava escrito “Women Life Freedom”, lema das manifestações de apoio às mulheres que estão contestando o governo iraniano.

Catedral ortodoxa armênia em Esfahan.
Decoração interior da catedral.

Após quatro horas de ônibus, chegamos a Yazd, um dos mais antigos assentamentos humanos do mundo. Localizada no centro do Irã, a cidade forma um oásis numa área desértica.

Em Yazd, na Cidade Velha.
Na Cidade Velha, fazem-se trabalhos de restauração.
Terraço de um bar na Cidade Velha. À esquerda, um “badgir”, torre de captação do vento fresco. Antiquíssimos precursores do ar condicionado, eles funcionam até hoje.

Yazd é conhecida pelos aquedutos subterrâneos (“qanats”). Estivemos no Museu da Água, que recapitula a longa história da irrigação no Irã — poços profundos, captação de água das montanhas, redes de canais. Ali perto, um reservatório construído no século XVI, hoje desativado, ainda mantém a enorme estrutura e as torres de vento que refrescavam a água.

Embora muçulmana, como o Irã inteiro, Yazd conta 4.000 seguidores do zoroastrismo, a mais antiga fé monoteísta existente. Antes da conquista islâmica, foi por vários séculos a religião predominante no país. Visitamos seu Templo do Fogo.

Venerada como emanação da divindade, a chama é mantida sempre acesa no templo zoroastrista.

No trajeto de Yazd a Shiraz, paramos para apreciar um vistoso cipreste, com idade estimada em 4.000 anos. A parada seguinte foi Pasárgada, local da antiga capital; encontra-se ali o mausoléu do rei Ciro II, o Grande, figura gloriosa da história persa. E finalmente as ruínas de Persépolis, também capital do reino, dos tempos do rei Dario.

O cipreste tem antiga presença na cultura iraniana. Na epopeia “Shahnameh”, um rei persa é comparado com “um alto cipreste banhado pela lua cheia”. E adiante: “O rei gostou das palavras daquela mulher, de corpo tão elegante como um cipreste.”
Ao pé do mausoléu de Ciro, evocando Manuel Bandeira: “Vou-me embora pra Pasárgada, lá sou amigo do rei.”
Em Persépolis.
Junto das ruínas de Persépolis, Odete recorda seus tempos de professora de história.

Última cidade do nosso percurso, Shiraz, berço de artistas e poetas, é a capital cultural do país. Situado num magnífico parque, o mausoléu do poeta lírico Hafez, do século XIV, recebe incessante fluxo de admiradores. Dizem que toda casa iraniana deve ter duas coisas: um exemplar do Corão e uma coleção de poemas de Hafez.

O mausoléu de Hafez sendo visitado.

A cidade de Shiraz é atravessada pelo rio Zayandeh. Infelizmente, por falhas no planejamento de barragens, ele está seco. Mas as pontes continuam lá, esbanjando a mesma graça de séculos atrás.

Ponte dos 33 Arcos (“Si-o-Seh Pol”), inaugurada em 1602.
Hoje, a “Si-o-Seh Pol” funciona como via de pedestres.

Pela cor dos azulejos do interior, a Mesquita “Nasir-ol-molk” é conhecida como Mesquita Rosa. Entre 8 e 11 da manhã, os raios solares que incidem nos vitrais provocam um efeito particularmente bonito. Outra joia são os cristais coloridos na fachada. Pena que no momento da nossa visita a serenidade da contemplação fosse perturbada por turistas fazendo “escarselfies”.

Fachada da Mesquita Rosa.
Interior do pátio da mesquita.
A luz solar atravessando os vitrais.

Da Mesquita Rosa, uma pequena caminhada leva ao “Bagh-e Naranjestan”, complexo de palácio governamental e residência do século XIX e começos do XX. O pavilhão principal é esplendidamente decorado com espelhos, azulejos, trabalhos em madeira e vitrais.

“Bagh-e Naranjestan”: o jardim visto do pavilhão.
Detalhes do pavilhão.

Depois de nossa volta, tivemos notícias de mais manifestações de protesto e medidas repressivas. Num regime ditatorial, com imprensa censurada, é difícil ter clareza do que ocorre na cena política. Enquanto estivemos lá, percebemos muitas insatisfações, mas a pergunta é se realmente existem articulações de forças capazes de promover mudanças.

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Antonio Carlos Boa Nova
Revista Passaporte

Sociólogo. Autor do livro “Fora da Ordem: do claustro ao mundo secular”.