Travessia antártica, partindo da Terra do Fogo e destinados à Ilha Decepção

Uma viagem até a península do continente gelado. Quatro dias intensos de veleiro em alto mar

Hailton Andrade
Revista Passaporte
4 min readNov 21, 2020

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Acordei atordoado com o balançar da minha cama. Quando deitei, juro que ela estava parada, estável. Agora, se move e só não me atira para fora porque de um lado tem a parede e do outro uma rede. Estou seguro na parte superior do beliche, mas meu instinto humano me faz desatar o nó da rede com impressionante velocidade e salto sem medo para o piso de madeira.

Vou correndo em busca de um banheiro, mas o balanço inconstante do chão me engana e me atira em direção à mesa do capitão. Meu nariz se choca contra a quina com toda a ignorância permitida, mas a dor não se sente, pois ainda preciso do vaso sanitário. Percebo, tardiamente, que as duas portas dos dois banheiros estão fechadas. Não há outra saída a não ser a saída. Saio por ela e vou direto para o convés, onde, ao ar livre, posso finalmente vomitar.

Assim comecei a minha aventura em direção à Antártida, tentando entender no que havia me metido ao embarcar com mais 11 pessoas em um veleiro de 70 pés para uma jornada de 21 dias. Não tive tempo suficiente de me preparar, pois a chance de me juntar ao time surgiu literalmente de uma dia para o outro. Um salto enorme para quem vinha da Baía de Todos os Santos. De repente, tomava o rumo dos mares gelados do extremo sul do planeta.

31 de janeiro de 2018

Era tarde quando saímos do Clube Náutico Afasyn, em Ushuaia, mais ou menos às 18h. O dia ainda era dia porque nessa parte da Patagônia o pôr-do-sol de verão acontece por volta das 22h. Tínhamos uma longa jornada pela frente. A previsão indicava uma janela favorável para cruzar a temida passagem de Drake e quatro dias no mar seriam o bastante para chegar até a Ilha Decepção, na península Antártica.

À noite, cumpri meu primeiro turno de vigilância junto a um dos marinheiros mais experientes. Duas horas atento ao que vinha pela frente e também no caminho feito pelo veleiro, neste momento movido a motor. Salvo o contato de autoridades chilenas através do rádio, nada muito diferente. Navegar em águas fronteiriças de Argentina e Chile foi tranquilo. Pouco vento e o canal parecia um conjunto de nuvens no qual o veleiro Fernande sobrevoava.

Dormi em paz e acordei do jeito que contei a vocês no início do texto. A reviravolta se deu após termos cruzado o Cabo de Hornos e alcançado o alto mar. Embora tenha navegado antes, jamais havia dormido dentro de uma embarcação. O mar sequer estava violento, foi a falta de costume mesmo que me fez mal. Até o barulho do vento empurrando as velas era assustador de dentro do barco. Do lado de fora, percebi que as condições não eram ruins.

Outras três pessoas se sentiram mal como eu, mas os demais pareciam bem confortáveis com toda a situação. Isso passou segurança para todos, mas meu corpo não quis relaxar como a minha mente. Passei dois dias sem poder comer bem, pois era quase certo vomitar. Vivi a base de água e biscoito salgado. Lembro bem que no terceiro dia me deram um pedaço de abacaxi e aí consegui virar a chave. Talvez tenha sido o melhor abacaxi da minha vida.

Satisfação

Confinados no Fernande, só podíamos receber visitas no mar azul marinho ou no céu um tanto cinzento. Aves e golfinhos passavam a nos saudar. E nessa pequena nação movida a vela, falávamos português, espanhol e inglês. Os países representados nesse novo mundo eram Brasil, Argentina, Portugal, Eslováquia e Irlanda. Risadas, conflitos, expectativas e adversidades compartilhadas por um grupo que se conhecia diante de grande intimidade.

Esquecíamos não dava para tomar banho. Era mais interessante olhar o horizonte em busca de um iceberg ou de um pedaço de terra. Sentir o vento frio no rosto foi das melhores sensações da viagem. Assim eu passava meu tempo livre. Também escrevia, lia e cantava “O bem do mar”, de Dorival Caymmi. Admito. Foi difícil desfrutar o momento da travessia. O susto inicial passou, mas todos pareciam compartilhar um sentimento. Queríamos chegar.

Quatro dias no mar e, de longe, avistamos o primeiro pedaço de terra. Parecia uma grande rocha flutuante, mas era terra mesmo. “Terra à vista”, gritavam os brasileiros. Era um sonho dizer tais palavras à vera. E já sem o temor de chocar-nos com um iceberg, vimos um grande bloco de gelo ao lado desse cantinho de terra. Estávamos chegando na Ilha Decepção, que poderia facilmente ser rebatizada por nós como Ilha Satisfação.

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Hailton Andrade
Revista Passaporte

Jornalista e mochileiro. Fracassei ao tentar uma volta ao mundo e não lamento. Amarrei meus cadarços em 19 países e na Antártida. Moro no Fim do Mundo