Um romance alemão em três atos II

Thais Martinho
Revista Passaporte
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9 min readJul 10, 2018

Ato II: dez mil quilômetros

Em algum lugar do Atlântico, 24 de junho de 2015

Sempre gostei de voar. Desde todo ritual nos aeroportos, até os aviões, as decolagens e pousos. Suspendemos nossa vida por algumas (às vezes muitas) horas e delegamos totalmente o controle sobre ela, o que pode ser libertador em minha opinião. Meu vôo de volta para São Paulo foi um parêntese muito bem-vindo na minha vida. Aproveitei para reviver a última semana surreal que tive e tentar organizar meus pensamentos antes de voltar à minha rotina.

Desde meu reencontro com Max naquela tarde em Berlim, até a minha partida, não nos desgrudamos. Passamos dois dias explorando a cidade juntos, eu dormindo no hostel que havia reservado, em um quarto compartilhado com cinco estranhos, e ele na casa de um amigo.

Por essas questões logísticas, sexo ainda não tinha rolado. Vontade e química não faltavam, tanto que quase aconteceu uma vez em um parque em Potsdam. Fazia frio, mas Max achou que seria romântico ficarmos após o fechamento do parque para “fazer amor sob a luz das estrelas, no meio da natureza”, como ele chamava, e pular o portão para sair depois, em uma espécie de “aventura romântica” (palavras dele). O uso de expressões piegas somadas ao contexto, que era basicamente transar no meio do mato, já mataram toda a minha vontade ali mesmo. Neguei veementemente, até porque não tenho ânimo e nem desenvoltura física para essas coisas, e ele ficou claramente decepcionado. Por isso, não pensei duas vezes quando ele me propôs uma viagem romântica a dois, por castelos e lugares menos turísticos na Alemanha. No entanto, depois que aceitei, senti algo estranho, uma espécie de culpa, por ter desistido tão facilmente dos meus planos iniciais para Berlim.

Partimos na manhã seguinte. No carro, Max me contou timidamente que já havia reservado um quarto para nós em um hotel que parecia bom. Gostei de não ter que me preocupar com reservas e dele ter resolvido isso, mas ao mesmo tempo pensei que ele poderia ter me perguntado. O leve incômodo foi abafado pela tensão sexual e o nervosismo que pairava no ar enquanto nos aproximávamos de nosso primeiro destino: Schwerin.

Se eu tivesse que descrever nossa primeira vez em uma palavra, ela seria SUADA. Suor dele, não meu. — Sabia que ele tinha que ter algum defeito, eu pensava, enquanto o cara escorregava em cima de mim. A cama encharcada, o cabelo pingando, o suor gotejando nos meus olhos, que eu passei a manter fechados porque começaram a arder. Um desastre! O suor que empapava os lençóis já estava ficando gelado e eu com frio. Nunca na vida vi alguém transpirar daquele jeito. Não fazia calor. Não fizemos acrobacias. Mal tínhamos começado. O que era aquilo? De repente ele resolveu parar (ufa), ir ao banheiro e buscar toalhas e roupões. Depois de secos, ele abaixou a cabeça, segurando o rosto com as mãos e disse:

- Não sei o que está acontecendo. Não sei de onde saiu tanto suor. Juro que nunca transpirei assim na vida!

Respirei aliviada.

- Estou muito nervoso — completou, enquanto desabava na cama.

Ficamos ali abraçados, conversando sobre nosso passado amoroso. Aparentemente, Max era muito inseguro, inclusive sexualmente. Depois de um tempo, mudamos de assunto, rimos e eventualmente, recomeçamos. Não chegamos a sair do hotel para conhecer a cidade naquele dia. E sim, isso era bom sinal.

Schwerin: uma cidade pequena com um castelo lindo — e isso é tudo de que me lembro a respeito.

De Schwerin fomos a Lüneburg, depois Bremen e de repente, estavámos de volta à Hamburgo, onde tudo começou. Conheci sua casa, repleta de naves do Star Wars em Lego (!), artefatos zen (incluindo uma fonte horrenda, com luzes que mudavam de cor) e uma enorme coleção de DVDs, que abrangiam desde clássicos do cinema como Blade Runner (minha escolha de filme para aquela noite) até comédias românticas estreladas por Jennifer Lopez interpretando uma organizadora de casamentos (a escolha dele). Lembro-me de acordar na manhã seguinte com o cheiro de café e ele tocando uma melodia no piano. Parecia que estava vivendo uma outra vida. Eu queria aquela vida. A que me esperava em São Paulo já não era mais suficiente. Não era boa o bastante. Agora, eu precisava dele e de toda essa parafernália romântica que eu nunca achei que fosse para mim.

Na manhã em que eu partiria para Berlim, acordei com um nó na garganta, que não foi embora. Tomamos café juntos e ele me levou até a estação de trem. Nos despedimos, com lágrimas nos olhos, reconhecendo o quão fodidos estávamos. Apaixonados e separados por mais de 10 mil quilômetros.

Assim que cheguei a São Paulo, tive uma surpresa. Max havia comprado uma passagem para passar dez dias aqui e chegaria em um pouco mais de um mês.

Enquanto o dia não chegava, enchi a orelha de todos os meus amigos, companheiros de trabalhos, chefes, familiares e quem mais bobeasse perto de mim com a nossa história. E claro, seguia falando com ele sem parar, diariamente, via WhatsApp. A tecnologia, aliás, foi uma grande aliada nesta fase. Com ela, pudemos estabelecer uma rotina e nos sentíamos próximos, apesar da distância física.

Todos os dias acordava e já tinham mensagens de bom dia dele no meu celular (ele estava quatro horas a frente). Começávamos a nos falar logo cedo, o que me fazia atrasar mais para o trabalho do que de costume. Falávamos sobre como tínhamos dormido, o que eu estava comendo no café da manhã (que sempre era criticado por ele — muitos carboidratos e laticínios e poucas frutas e fibras) e eu ignorava, rindo do jeito natureba dele. Nunca imaginei me relacionar com alguém que tivesse hábitos alimentares tão saudáveis sem me irritar. Ok, o fato dele criticar minhas escolhas alimentares me irritava um pouco, mas eu ignorava seus conselhos de qualquer forma e deixava isso bem claro. Passávamos o resto do dia nos falando, mesmo enquanto eu estava trabalhando. Estava infeliz no trabalho e tudo que eu queria era poder largar tudo e ser groupie dele, acompanhando seu trio de jazz em turnê pela Europa. Já nem me importava com carreira ou dinheiro. Uma vida simples me bastaria. À noitinha, quando ele ia dormir, era quando eu finalmente dedicava algum tempo para a minha vida e meus amigos. Que aliás, estavam todos se preparando para estudar fora, casar, tirar ano sabático e fazer outras coisas grandiosas com as suas vidas. Sentia que estava ficando para trás. Todo mundo estava indo embora e vivendo seus sonhos. Ainda bem que eu tinha o Max.

Além de conversar exaustivamente, nossa rotina também incluía o Max tentando me apresentar algumas práticas de seu estilo de vida, como a cozinha vegana, a meditação e a literatura espiritual/zen — ou baboseiras de autoajuda, como eu gostava de chamar para irritá-lo. Aos fins de semana, escolhíamos uma receita vegana para cozinhar via FaceTime e depois fazíamos a refeição juntos. Essa era uma tradição bacana e acredite, fizemos muitas receitas gostosas. A meditação eu tentei. Juro. Tento até hoje de vez em quando. Mas tudo que consigo é sentir minhas pernas e minha bunda formigando de tal forma que não consigo mais me concentrar. Certa vez, ele disse que havia se conectado comigo na meditação e eu disse que havia sentido também, só para não o decepcionar, quando na verdade, eu estava na cozinha passando um café. Quanto à literatura, bem… falarei sobre isso mais para frente.

Estava me esforçando muito para deixar meu cinismo de lado. É difícil. Sou sarcástica. Sou arrogante. Sou cheia de manias e até um pouco neurótica, admito. Estava lutando para aceitar que ele fosse fã de Paulo Coelho (acredite se quiser) e comédias românticas da Jennifer Lopez, que gastasse centenas de euros comprando naves gigantes de Lego do Star Wars e que fosse metido a espiritualizado e natureba.

Precisava deixar de lado todas essas besteiras e me abrir de verdade. Afinal, essas coisas eram besteiras, não eram?

São Paulo, agosto de 2015

Fui buscá-lo em Guarulhos. Tirei o dia de folga no trabalho, fecharia o mês com um dia descontado da minha folha de pagamento. Não me importava. Quando o vi, meu coração se encheu. Quando nos abraçamos, senti alívio. Fomos abraçados do taxi até a minha casa. Tinha me esquecido de como ele era alto. Perto dele meu apartamento parecia uma casa de bonecas. Minha cama era pequena para ele, um pedaço da perna ficava de fora e volta e meia ele batia a cabeça no batente das portas.

Eu já tinha um monte de coisas planejadas e foram dez dias intensos explorando a cidade, apresentando minha vida para ele, minha família, meus amigos, meus lugares. Queria que ele amasse São Paulo como eu amava. E ele amou. Se apaixonou pelas cores, pela variedade, pelas pessoas, pela noite, pela pizza e principalmente, pela comida japonesa — melhor do que no Japão, ele dizia.

Foi nessa primeira visita a São Paulo que ele disse que me amava pela primeira vez — Ich liebe Dich, Schatzi e eu respondi — também te amo, meu lindo. Depois de um tempo, ele decidiu que “lindo” não era um apelido fofo o suficiente para ele mesmo e inventou Maxibärchen (que queria dizer ursinho Max), que comecei a usar com um pouco de vergonha e dor na alma, mas tranquila já que era em alemão.

Antes de ir embora, ele quis me dar alguns presentes. Um deles era uma partitura com uma música que levava meu nome. Ele havia escrito para mim, no dia em que ele voltou para casa depois do nosso primeiro encontro e se arrependeu. Nunca imaginei que algum dia alguém escreveria uma música para mim. Fiquei sem palavras.

Como nem tudo é perfeito, o outro presente era um pacote com dois de seus livros preferidos: O Poder do Agora de Eckart Toille e Um manuscrito encontrado em Accra de Paulo Coelho para lermos juntos, capítulo a capítulo e comentar. Quis morrer.

Estava surpresa com como a nossa relação estava funcionando bem, mesmo à distância. Bem, fracassamos em nossas tentativas de leitura dos livros preferidos dele. Eu não consegui conter a minha crítica e ele acabou se ofendendo e desistiu. Fora isso, todas as nossas outras rotinas seguiam firmes e fortes. Depois da primeira viagem para São Paulo em agosto, ele ainda voltara para cá mais uma vez no final de setembro, por vinte dias, e fizera até alguns shows de jazz, com músicos locais. Foi quando ouvi a minha música, ao vivo, pela primeira vez e nunca me senti tão ridícula e tão feliz ao mesmo tempo.

Andávamos discutindo bastante os prós e contras de viver na cidade grande. Na verdade eu falava sobre os prós e ele listava os contras. Ele tentava me convencer de que uma vida tranquila no campo seria mais satisfatória, inclusive para mim. Será?

Hamburgo, novembro/dezembro de 2015

Um mês inteiro juntos na Alemanha.

Vi neve pela primeira vez. Conheci a família e os amigos do Max. Cruzamos a Alemanha, de norte a sul de carro. Visitamos mais de dez cidades. Passeamos pelos mercados de Natal. Fizemos planos.

- Você acha que poderia dar aulas de português aqui? — Max me perguntou uma noite, quando voltávamos do mercado.

Comecei de fato a me imaginar vivendo na Alemanha. Com o Max. E naquele momento nada fazia mais sentido do que isso para mim.

Ilha Grande, 1 de janeiro de 2016

- Feliz ano novo!

Recebemos 2016 juntos, deitados na areia, em frente ao mar. Max estava encantado, nunca havia conhecido um lugar assim. Sempre que podia me agradecia pelo melhor ano novo de sua vida. Passamos o último dia de 2015 passeando de barco por praias paradisíacas, observando o mar azul turquesa e o grande monte de mata atlântica que se destacava ao fundo. Descabelados, molhados, cheios de areia e sal. Felizes.

A viagem estava perfeita até que perdi minha cartela de anticoncepcionais e tivemos um probleminha com o método alternativo. Depois de muito procurar, encontrei a única farmácia que vendia a pílula do dia seguinte em Ilha Grande.

Cheguei toda descabelada e suada na pousada, agradecendo pelo ar condicionado e fui direto tomar a pílula. Max me interrompeu e me abraçou.

- Espera… E se você não tomasse? — perguntou, sorrindo. Vamos ver o que acontece. Seria tão ruim assim?

Fiquei sem reação, completamente imóvel. Não quero ter filhos. Nunca quis. E não sei se um dia vou querer. Já falamos sobre isso. Será que ele interpretou esse não sei como talvez? Ou como muita gente me diz “ah, mas você diz isso porque ainda não achou a pessoa certa” e ele se considera a pessoa certa? E se eu não tomasse? Será mesmo que seria tão ruim assim ter filhos com ele? Se a gente um dia se separasse, será que ele poderia ficar com a criança e eu só visitar? Há quanto tempo estou sem falar?

- Desculpe, Schatzi, a decisão é sua. Não quero te pressionar — completou, provavelmente vendo a minha cara de desespero.

E assim começava 2016.

Ilha Grande — 2015–2016

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