Uma beleza que se desmancha

Annamaria Marchesini
Revista Passaporte
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5 min readMay 28, 2018

Depois de percorrer a longa passarela que a liga ao mundo, cruzar a porta Santa Maria e entrar em Civita di Bagnoregio é como repentinamente voltar ao passado ou invadir o cenário de um filme de época. Tudo parece estar como na Idade Média. Não fossem os pouquíssimos moradores (cerca de 10), turistas e pessoal dos restaurantes e lojinhas, também poucos, e Civita seria um naco do passado no cume de uma montanha que há séculos se desmancha e arrasta consigo, lentamente, a pequena vila. Por isso, aliás, Civita é chamada “a cidade que morre”. Mas, ao visitá-la, somos nós que morremos de amor.

Fundada pelos etruscos há cerca de 2500 anos e passando de tempos em tempos por vários domínios, Civita é considerada um dos lugares mais bonitos da Itália. Não por acaso. Ela é mesmo uma lindeza. Pequenininha, com jardins floridos em algumas casas, toda de pedra e, sob sol, chega a brilhar. Li que a estrutura urbana de Civita se mantém etrusca, apesar da arquitetura “já” ser da Idade Média. Além disso, as informações são de que há, na região, muitos tesouros arqueológicos.

Sempre achei que ela havia sido construída lá em cima por questões de defesa, mas a verdade é que Civita di Bagnoregio, que era ligada à cidade de Bagnoregio, foi isolada por terremotos e pela própria erosão que corrói a montanha. Uma matéria no jornal italiano La Stampa diz que em 1695 e em 1764 houve terremotos poderosos que “separaram” Civita da cidade principal e deram a ela o jeitinho que tem hoje e que a faz tão interessante. Civita di Bagnoregio desponta em meio a vales e serras, algumas só de calcário. De longe, é como se coroasse a montanha onde foi erguida.

Além do encanto que ela simplesmente é, Civita di Bagnoregio oferece paisagens belíssimas dos vales ao seu redor. Na cidade de casas de pedra, coloridas com vasos de flores e pelo verde que sobe a montanha, há vários pontos interessantes. Na praça San Donato, o que chama a atenção é a igreja em homenagem ao santo, construída no século VII, mas com arquitetura do século XVI. O terremoto de 2016 quase destruiu sua torre, que foi restaurada. Para quem quer ir mais a fundo sobre o que vem acontecendo à vila, há o Museo Geologico e delle Frane (Museu Geológico e de Deslizamentos de Terra, numa tradução livre).

No lado oposto à porta de Santa Maria um caminho desce rente à montanha. Pelo mapa, vi que lá embaixo existem dois lugares que devem ser muito legais: a Capela da Madona do Cárcere e um túnel que foi construído nos anos 30, alargando o traçado de um aqueduto romano. Na extremidade dele há ruínas de uma tumba. A capela foi, originalmente, uma tumba etrusca, usada depois como habitação e pousada de pastores e seus cães. Fiquei curiosa, mas não me aventurei. Se descesse, não teria forças para subir. Teoricamente eu teria preparo físico para enfrentar a ladeira. Mas já havia percorrido um longo caminho para chegar à Civita e estava morta de cansaço.

Os blogs e sites de viagem informam que é possível ir a Civita de carro, ônibus e trem. De carro me parece mais fácil. De ônibus, não faço ideia. De trem, é preciso ir até as cidades de Orvieto ou Viterbo e, a partir delas, pegar um ônibus para Bagnoregio. Optei pela primeira. Saí de Florença no trem das 9h04 e cheguei pouco depois das 11h. Daí em diante, o negócio foi perguntar para o pessoal da estação e moradores para saber o que fazer. Na bilheteria da estação soube que a passagem do ônibus para Bagnoregio era vendida no bar, por 1 euro e 30 centavos. Os horários de ida e volta ficam num quadro da parede.

O ponto para pegar o ônibus é ao lado da estação do funicular que leva ao centro de Orvieto. Quando cheguei, o próximo passaria às 12h55. Sondando aqui e ali soube que, antes de passar pela estação, o ônibus sai de um estacionamento do exército, cidade acima. Peguei o funicular e fui para o ponto. Não há nenhuma indicação. Foi a gentil vendedora de passagens do funicular que me mostrou o caminho.

Até Bagnoregio foi pouco mais de uma hora. Mas o ônibus deixa os passageiros bem longe da passarela que se cruza para chegar à Civita. Para ir a pé do ponto final até lá é preciso cruzar uma parte da cidade e seguir por uma estradinha, descer uma escadaria e depois percorrer outra estrada, com subidas pouco simpáticas. Não vi táxis por perto. Eu e meus companheiros de viagem fizemos este trajeto. Andando rápido, cheguei em meia hora, debaixo de sol e com a temperatura a uns 30 graus. Antes de pisar na passarela é preciso pagar 3 euros para entrar em Civita. Este dinheiro, segundo me informei, é usado para a conservação da cidade.

Eu já estava suando pelas pálpebras quando me vi diante daquela beleza absurda, lá do outro lado. “Agora é fácil”, pensei. Ilusão. O caminho começa plano e, com aquela paisagem linda ao redor, até relevei o calor e o cansaço. Mas, quase no meio, a passarela vira um aclive puxado. Respirei fundo, encarei o desafio e fui devagar até o fim, onde uma escadaria íngreme e em curva marca o fim da maratona.

Mas, como disse lá no início do texto, ao cruzar a porta de Santa Maria e entrar na cidade, fiquei deslumbrada. Só voltei a lembrar do cansaço quando vi a descida para a capela e o túnel, que não enfrentei. E quando encarei a passarela e os 30 minutos de caminhada até o ponto do ônibus para voltar a Orvieto. De lá, peguei o trem para Florença. Cheguei em casa às 21 horas fisicamente destruída, mas realizada: havia conhecido um dos lugares mais lindos da minha vida.

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Annamaria Marchesini
Revista Passaporte

Sobre lugares por onde passo e outras coisinhas mais. Afinal, tudo é viagem. As fotos são minhas, para o bem e para o mal.