Viagem no Tempo do Onça

Antonio Carlos Boa Nova
Revista Passaporte
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8 min readJun 6, 2018

Viagens internacionais eram bem mais caras que hoje, e o orçamento do meu pai andava apertado. Assim, foi por crowdfunding − vaquinha de parentes e amigos − que fui pela primeira vez ao exterior. Estávamos em 1958, e eu cursava o clássico no Anchieta, em Friburgo. Outro colégio jesuíta, o São Luís, de São Paulo, estava organizando uma excursão à Europa, e o Padre Coelho, que a comandava, abrira vagas para alguns alunos do Anchieta. Entrei nessa.

Com as atuais praticidades, não é fácil imaginar uma viagem daqueles anos. Eu próprio me espanto ao relembrar.

Grávida de oito meses, minha prima me levou de carro ao aeroporto; junto, a comitiva familiar de bota-fora. No Galeão, todos engravatados − era o figurino −, embarcamos para Roma num Constellation da Panair, quadrimotor que fazia pouco mais de 500 km/h, levando uns 100 passageiros. Para cruzar o oceano, reabastecia em Recife e dali pegava a reta até Dacar. Ainda pararíamos em Lisboa e Madri, em cada escala descendo todos para o aeroporto. No total, mais de 24 horas.

De Roma até Lisboa, seriam sete semanas de ônibus, geralmente em estradas de pista única, atravessando nove países. Ainda não existindo União Europeia nem euro, a cada fronteira passaportes eram examinados aqui e acolá, e se fazia câmbio. Amolações que víamos como inseparáveis do ato de viajar.

No ônibus, com Sergio Pachá, colega do Colégio Anchieta. Sergio já era fluente em francês, e quando encontrava padres, conversava em latim.

Desde o começo, senti o fascínio de me deparar com cartões postais, como que saídos de livros, filmes ou do álbum de figurinhas colecionadas na infância − em Roma, a Capela Sixtina, o Coliseu; depois, ruínas de Pompeia, canais de Veneza, Alpes Suíços (com neve em pleno verão), catedrais góticas, Torre Eiffel, pinturas e esculturas celebradas… Cenários que nos maravilham ainda hoje, quando viajamos mais; na época, pareciam sonho.

Diante do Coliseu, os cinco do Anchieta que nos juntamos à turma do Colégio São Luís.
Em St. Moritz, encontro com a neve. Fotos coloridas eram raridades no Brasil daquele tempo (a sucursal da Kodak mandava revelá-las no Panamá).

Na Basílica de São Pedro, tivemos audiência coletiva com o Papa Pio XII − bem disposto, ninguém o imaginaria morrendo dali a quatro meses. E desconhecíamos as controvérsias sobre ele; para nós, era simplesmente o Papa, figura sagrada, algo etérea. Com a igreja cheia e o nosso grupo bem na frente, Pio XII veio pela entrada da nave central, carregado num palanquim aberto. Várias vezes se deteve para receber o solidéu branco que alguém lhe presenteava: trocava-o pelo que tinha na cabeça, e o devoto levava de souvenir o que minutos antes cobrira o cocuruto papal. Chegando ao trono, Pio XII se dirigiu aos grupos, em vários idiomas. O português foi o último, e vendo-nos perto, virou-se para nós e falou de improviso. Antes de sair, deu uma circuladinha ali pela frente, e foi o maior empurra-empurra, todos querendo tocar no Papa − devia dar sorte −; só cheguei a um metro.

Na Suécia, corria a Copa do Mundo de 58, que o Brasil inteiro acompanhava pelo rádio. A Europa Ocidental, porém, já recebia transmissões internacionais de televisão, e da Itália, assistimos aos dois últimos jogos. O dia da final contra a Suécia já começou patriótico: viajando de Florença para Pádua/Veneza, paramos em Pistoia, no cemitério dos pracinhas brasileiros mortos na Segunda Guerra (seus restos seriam depois trasladados para cá); perfilados, cantamos o Hino Nacional. No restaurante de Bolonha, onde almoçamos, havia um televisor, e o gerente nos deixou assistir ao jogo.

No início, susto: Suécia 1 a 0. Mas logo Garrincha driblou três suecos e cruzou da linha de fundo para Vavá empatar. Ainda no primeiro tempo, em repetição da jogada, Vavá colocou o Brasil na frente. A cada gol brasileiro − esses dois, mais os três do segundo tempo (a Suécia ainda marcaria um) −, fazíamos ruidosa algazarra, e os cozinheiros e copeiros vinham de avental ver o que acontecia.

Entramos no ônibus festejando e rindo. Então, o Padre Ribeiro, que acompanhava o Padre Coelho, comunicou que na missa pedira a Deus uma vitória brasileira e prometera que, se ganhássemos, rezaria conosco um terço. No espírito das guerras religiosas, entendia o venerando sacerdote que encaçapar os “hereges” luteranos promoveria a maior glória de Deus. Pelo que sei, não são válidas promessas para outros cumprirem, mas ninguém reclamou, e rezamos o terço.

Viagens pela Europa incluem visitas a museus, monumentos, lugares históricos… Com padres chefiando, cresce a quota de igrejas. Algumas realmente imperdíveis, como a Catedral de Colônia e a Sainte Chapelle, em Paris; mas houve programas insólitos: em Pádua, fizemos fila diante do que afirmam ser a língua de Santo Antônio.

Quase sempre nos hospedávamos em casas religiosas; às vezes, hotéis. Em Frankfurt, ficamos na Haus der Jugend, albergue de estudantes onde era costume cantar músicas típicas no saguão. O jovem Padre Azevedo, que esteve conosco em parte da viagem, nos ensaiou na Aquarela do Brasil − inclusive o “bamboleio que faz gingar”. A execução foi desastradamente desafinada.

Naquelas semanas, pude observar outros modos de fazer as coisas, tocar a vida. Da janela do ônibus, impressionava-me com o aproveitamento dos campos: cultivava-se cada pedacinho de terra, diferentemente da paisagem brasileira. Desperdícios eram inadmissíveis, e os padres nos recomendavam não deixar sobras no prato − seria deseducado em países que haviam sofrido privações na Guerra. Nem sempre se conseguia: um restaurante alemão serviu sopa fria, e um francês, bifes malpassados, parecendo quase crus. Mas descobrimos que um bom vinho custava menos que uma Coca-cola.

Na fronteira da Alemanha Ocidental, enquanto aguardava os trâmites, o pessoal foi tomar sorvete, e houve quem despreocupadamente jogasse papéis no chão. Quando já estávamos no ônibus, um policial disse ao padre que só seríamos bem-vindos ao país depois que os papéis fossem recolhidos. Os descuidados desceram e trataram de reparar a gafe.

Era um mundo de maiores controles. Ao entrarmos na Alemanha, fora registrado o trajeto a percorrer no território. Como fizemos um passeio extra, a quilometragem excedeu o limite autorizado, o que acarretava multa. Por sorte, veio um guarda bonachão, tipo apreciador de chope, e ponderou: “Libere os brasileiros. São os campeões do mundo!”. Soubemos então que na final contra a Suécia os alemães torceram todos pelo Brasil.

Quase não notei ruínas da Segunda Guerra, terminada treze anos antes. Só me lembro em Monte Cassino, mosteiro ao sul de Roma que o próprio São Bento fundou numa colina − houve ali encarniçadas batalhas entre aliados e alemães. Mas nosso roteiro não passava pelos maiores palcos da Guerra. E foi justamente na Alemanha, reconstruída com muitos prédios modernos, que tive a impressão de maior prosperidade − certamente, efeito dos incentivos do Plano Marshall. Já na Espanha do Generalíssimo Franco e em Portugal do ditador Salazar, era visível o atraso.

Incomodado com as impontualidades do pessoal, o Padre Coelho certa vez perdeu as estribeiras. Em Colônia, tivéramos tarde livre e devíamos chegar à hora marcada para retornarmos à cidadezinha onde nos hospedávamos − Bad Godesberg, encostada em Bonn, capital da Alemanha Ocidental. Mas dois colegas foram passear de barco no Reno e perderam o prazo. Sem mais delongas, ordenou o padre que o motorista desse a partida, deixando-os lá, a 30 km do destino. Curtos de dinheiro, arranhando o inglês, puseram-se eles a pedir carona, martelando duas únicas frases, sílaba por sílaba: “I go to Bonn. I have lost my money”. Chegaram inteiros.

Em Bruxelas, realizava-se a Expo 58, primeira grande exposição internacional desde o final da Guerra. Até hoje, ainda está lá o Atomium, construção em forma de átomo, com as “partículas” ligadas por escadas rolantes. Havia pavilhões de muitos países, inclusive o Brasil, todos propagando sua boa imagem. Vivia-se o começo da corrida espacial: russos largaram na frente com os Sputniks, americanos contra-atacavam com os Explorers. Não resisti a uma espiada no pavilhão russo, mas a única lembrança que guardo é o gostinho de fruto proibido.

Com 103 m de altura, o Atomium foi o símbolo da Expo 58 (Photo by Valentin Lacoste on Unsplash).

Por vezes nos surpreendíamos de ter que pagar o que supúnhamos gratuito. Em Paris, cansados de bater pernas entre tantas belezas, um colega e eu nos sentamos em cadeirinhas de ferro existentes no Jardim das Tulherias. Não demorou a aparecer uma senhora nos cobrando pela acomodação das nádegas. Entendi “vingt francs”, mas quando fui pagar, corrigiu para “cent francs”. No ticket que nos deu, constava que poderíamos ficar lá sentados o dia inteiro, como se mais nada tivéssemos para fazer na cidade.

Nas Tulherias, com o colega José Luís, aproveitando que as cadeiras estavam pagas. Ao fundo, o Arc de Triomphe du Carrousel.

Temeroso das tentações de Paris, o severo Padre Coelho cuidara para que pernoitássemos não lá, mas no colégio jesuíta de Versalhes. Mais liberal, o Padre Azevedo convidou um pequeno grupo a ir certa noite passear na Cidade Luz; gostaram bastante. Não participei desse programa, só fiquei sabendo depois. Para compensar, aparei os cabelos em Versalhes, como Luís XIV.

Foi também o Padre Azevedo que nos ensinou a usar o metrô em Paris, com o esquema de baldeações (“correspondances”) e o resto. Pode parecer trivial, mas só conhecíamos metrô de ouvir falar. No Brasil, ainda levaríamos quase vinte anos para ter a primeira linha.

Oficialmente, nossa viagem se chamava Peregrinação a Lourdes, pois se celebrava o centenário dessa devoção. De fato, “peregrinamos” por um bom pedaço da Europa, mas evidentemente era obrigatória a escala em Lourdes, na encosta dos Pirineus Franceses. Com a cidade lotada de romeiros, chegamos a auxiliar cadeirantes que iam à catedral. Próxima do centro, a gruta onde a menina Bernadette afirmou ter visto a Virgem Maria atraia muita gente. A autorização para entrar era, porém, restrita a determinados grupos. Com inveja, vi holandeses que se dirigiam à entrada cantando um hino; então, meti-me sem demora no meio deles, imitando seus sons, abrindo bem a boca. Houve quem me olhasse atravessado, mas acabei ingressando na gruta.

Em Toledo, tivemos tarde livre, e alguns foram ao Alcázar, celebrado baluarte franquista da Guerra Civil. Preferi visitar com um colega a Casa de El Greco, e não nos arrependemos. Em um bar do caminho, uma tabuleta anunciava: “Prohibido escupir y blasfemar”.

Em Lisboa, ponto final da viagem, fazia calor, e o único refrigerante era o lusitano Sumol (anos depois, lançariam o comercial: “um gato é um gato, um cão é um cão; Sumol é aquilo que os outros não são”). Naquele tempo, os ouvidos lusos não sintonizavam no falar brasileiro; quando pedi informações na rua, o gajo me fitou embasbacado: “En français, s’il vous plaît!”.

Fomos a uma tourada, e aprendemos que em Portugal não se mata o touro. Também o toureiro costuma sair vivo − o que ele fazia era cravar bandarilhas no dorso do animal e levá-lo a certas coreografias na arena. Depois, um pequeno grupo vinha pegar o touro à unha; o mais façanhudo agarrava-o pelos chifres, ajudado pelos demais, até que um deles pegasse de jeito a cauda e a puxasse, o que tinha efeito calmante − inclusive para nós. Em seguida, algumas vacas com sininhos no pescoço entravam na arena em trote charmoso; solto nesse instante, o touro passava a segui-las embevecido, e iam todos embora. O toureiro voltava então para receber aplausos. Moças atiravam flores; vi algumas jogando um pé do sapato, que ele agradecia e arremessava de volta.

De Lisboa ao Rio, via Dacar e Recife, tivemos vinte horas de viagem. No Galeão, em plena madrugada, o pessoal da alfândega remexeu nossas malas, uma por uma. E a Panair nos brindou com um diploma em que Netuno, deus do mar, atestava nossa travessia do Atlântico.

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Antonio Carlos Boa Nova
Revista Passaporte

Sociólogo. Autor do livro “Fora da Ordem: do claustro ao mundo secular”.