Vivi um ano sabático e nunca mais vou repetir a experiência

Viajar o mundo sem trabalhar por um ano tem seus altos e baixos. Como diz o ditado, “nem tudo são flores”

Hailton Andrade
Revista Passaporte
6 min readNov 14, 2020

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Entre 31 de agosto de 2015 e 31 de agosto de 2016, eu fracassei ao tentar dar uma volta ao mundo. A viagem, por sua vez, esteve longe de ser um fracasso. Vivi intensamente. Um ano que valeu por dez. Voltei para casa com uma bagagem socio-cultural muita rica, mas a minha mochila já não era a mesma, literalmente. Fui feliz e também sofri um bocado. Não me arrependo de nada, apenas acho necessário dizer que estar tanto tempo na estrada está longe de ser o que costumam idealizar por aí.

E quando digo que idealizam é pelo fato de ter lido muita coisa antes de ter tomado a decisão de deixar o trabalho para viajar. Além disso, escutei muita gente dizer que invejava o que eu faria. Essas pessoas e eu não sabíamos o que era de fato um ano sabático. Hoje eu sei. Entendo que minha experiência é uma entre milhares, mas a intenção aqui é fazer diferente daquilo que eu consumi antes de tomar a minha decisão. Não vou negar as coisas lindas que me aconteceram. Sorri muito mais do que chorei. Só que hoje eu quero contar dos anseios, das dores, dos reveses.

Nesses 12 meses de ausência, botei os pés em 15 países, incluindo o Brasil. Comecei pelo Uruguai, cruzei diferentes fronteiras entre Argentina e Chile algumas vezes, atravessei a Bolívia e aproveitei para passar uns dias no Pantanal brasileiro. Também visitei o Peru, fui adotado por uma família no Equador e completei seis meses de viagem em solo colombiano. Voei para o México após quase 20 mil km de chão pela América do Sul. Morei lá um tempo. Cruzei o Atlântico e revi amigos da estrada na Europa. Encontrei alguns conterrâneos também. Decidi fechar o ano na Mongólia. Ufa.

Despedidas

Quando saí de casa eu tinha um complexo plano de volta ao mundo, mas menos de dois meses na estrada foram suficientes para me fazer entender que não havia motivo para seguir com aquilo. Estava deixando muita coisa passar, me despedindo cedo demais de pessoas e lugares. Rasguei o dito plano e deixei a vida me levar.

Acredito que esse processo começou com a dor das despedidas. Me aproximei de muita gente. Dizer adeus não era fácil, mas sem dúvida era mais complicado para quem ficava, mesmo quando minha presença ali naquele lugar era por poucos dias. Enquanto pensava na próxima parada, via dor nas pessoas que me haviam aberto suas casas, suas vidas. Abraços apertados demais para serem esquecidos, às vezes acompanhados de lágrimas demasiadamente sinceras. Parecia cinema, mas era uma obra de não-ficção.

A decisão de aproveitar mais as experiências, ficando mais tempo nos lugares, só piorou essa questão. Mais tempo, mais aproximação. A dor sentida era compartilhada, eu levava muito em mim, mas outra vez magoava quem ficava simplesmente ao dizer qual seria a data da partida. As pessoas não entendiam porque eu tinha que seguir. A verdade é que nem eu sabia. Poderia ter iniciado tantas vidas nesse tempo em que estive fora. Acho que de alguma maneira comecei, mas para seguir o batuque voltava a arrumar a mochila.

Algumas pessoas voltei a ver, com a maioria mantenho contanto, mas até hoje dói saber que algumas jamais voltarei a ver. Não dá para rebobinar a vida. Perdi a conta das festas de despedida que fizeram para mim. Algumas de surpresa. A saudade chorada no ato do adeus se acumulou de tal maneira que não pretendo repetir em doses tão intensas como naquele ano sabático. A dor vivida tem na recordação muita beleza, mas o espaço de tempo era curto demais para assimilar as coisas.

Celulares e roubos

Não gostaria, mas tenho certa experiência em ser vítima de assaltos. Já havia acontecido no Brasil. Sempre estive muito exposto, e viajando um pouco mais. Durante o ano sabático, tive um “azar” danado com celulares e passei por situações que se tornam ainda mais chatas quando estamos longe de casa.

A primeira foi em Tilcara, no norte da Argentina. Meu celular parou de funcionar de repente. O que me deixava tranquilo era o fato de ter um mini laptop e uma câmera GoPro. A comunicação com a família e as fotos da viagem estavam garantidas. Tive um pequeno estresse ao ser enrolado por “técnicos” um mês depois em Sucre, na Bolívia, e em Corumbá-MS acabei comprando um novo. Enfim, uma besteiririnha.

Golpe duro mesmo aconteceu quando eu deixava Trujillo, no Peru. Saí de noite caminhando em direção à rodoviária da cidade quando fui abordado por dois homens armados em uma moto. Tive que entregar as minhas duas mochilas, a pequena e a grande. Roupas, computador, câmera, caderno… Os donos levaram, diriam os mais sarcásticos. Agora eu era um mochileiro sem mochila. Por sorte, passaporte, carteira e celular estavam nos bolsos da calça. E sempre levei um cartão de memória com as fotos da viagem dentro da cueca. Decidi seguir.

Para tentar resumir essa parte pra lá de chata do ano sabático, lhes conto que o celular que sobreviveu ao assalto morreu ao cair nas águas de uma praia, em Máncora, dias depois. Voltei a comprar um na Colômbia e este foi roubado após um mês de uso no metrô da Cidade do México, quando uma gangue me abordou em uma estação, me jogando para dentro de uma vagão lotado. Consegui salvar a carteira. E, por fim, tive o cartão clonado, também no México, e só me dei conta na Europa, quando percebi que haviam limpado minha conta.

Todos esses foram baques que consegui superar. Aprendi a viajar mais leve e passei a ter pouquíssimas coisas, mas isso já vinha acontecendo antes de qualquer roubo. Um processo natural ao carregar a vida nas costas. Só que nos momentos dos acontecimentos, tudo pesava de outra maneira. Pensei em desistir, me isolei, me culpei. Tive muita sorte. Encontrei ombros amigos em pessoas que sequer me conheciam e os juntei com as boas energias emanadas por família e amigos no Brasil.

A grande perda

Foram três dias explorando as belezas do Salar de Uyuni, o famoso deserto de sal da Bolívia, e outras belezas da Reserva Nacional Eduardo Avaroa. Dias intensos e zero sinal de internet, como eu curtia. Estava feliz. Cheguei na cidade de Uyuni e decidi ficar por uma noite. Encontrei um lugar barato e queria ficar online para deixar minha família despreocupada. Sem celular, abri o computador. Ao completar o login no Facebook, recebi uma das piores notícias da minha vida. E da pior forma possível. A postagem em destaque era de um primo enlutado pela morte da nossa avó Zazá.

Foi um verdadeiro choque, ela não estava doente quando deixei a Bahia. Começo a abrir as insistentes mensagens dos meus pais que tentavam que informar do ocorrido há três dias, justamente quando parti para o deserto. Perdi, inclusive, o funeral da minha avó. Ainda atônito, escrevi. Não sabia bem o que dizer. A vontade era de voltar, de abraçar meu pai. Eu queria ouvir, falar, mas a tecnologia nas minhas mãos só me permitia ler e escrever.

Depois de trocar mensagens onde buscamos algum conforto, desligo o computador e desabo. Lágrimas e solidão. Sozinho, no meio do nada, preocupado pelos meus. Fiquei completamente desnorteado. Em um primeiro momento, decidi voltar para casa. Interromper algo que ali já não fazia sentido. Meu pai, justamente ele, me disse para continuar. Que era da vida. E me fez um pedido. “Escreva algo para ela”, sugeriu.

Voltei a abrir o computador mais tarde naquela noite. Escrevi uma carta e entendi que todos a família nunca deixou de dizer ou demonstrar o que sentia por ela. A ideia de voltar para casa me perseguiu por uns dias, mas pouco a pouco fui assimilando, aceitando, seguindo. E talvez por isso não tenha deixado nada mais me parar. Vó Zazá passou a viajar comigo.

Voltei. E agora?

A volta para casa foi gloriosa, digna dos panteões da saudade. Meses revendo amigos e familiares. Uma semana depois já estava de volta ao trabalho, comentando jogos de futebol, e a conta zerada respirava. Mas o tempo passou e logo veio um vazio. E esse vazio era preenchido por muita coisa a processar. Tudo era diferente, a vida andava meio fora de lugar. Antes tão consciente, tão decidido, de repente perdido.

Não sabia e talvez até hoje não saiba bem o que querer da vida. O que buscar. E olhe que já vivi muita coisa de lá para cá. Quatro anos se passaram e não existe métrica para medir os impactos desse ano sabático na minha vida. Ela, por sua vez, continua. E se a matemática me permite, digo que o saldo da felicidade foi positivo. Mas é importante lembrar: a tristeza também teve seu lugar.

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Hailton Andrade
Revista Passaporte

Jornalista e mochileiro. Fracassei ao tentar uma volta ao mundo e não lamento. Amarrei meus cadarços em 19 países e na Antártida. Moro no Fim do Mundo