Caso Miguel Otávio: como a cobertura da morte trágica de crianças diz muito sobre gênero

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3 min readJul 2, 2020

“Nossa bossa é a fuça de um fuzil
Damas pretas de preto choram os filhos que pariu

(As Bahias e a Cozinha Mineira)

O Brasil é um país acostumado à morte trágica de crianças e adolescentes, ainda que a cobertura midiática possa nos dar a impressão contrária. Ao mesmo tempo em que determinadas crianças recebem das grandes coberturas a validação da inocência dos primeiros anos, outras são jogadas na conhecida classificação “De Menor”, tão reproduzida nas páginas policiais. O que causa essa mudança? A cor da pele.

Todos os dias somos inundados com notícias dos filhos da negritude sendo assassinados e dificilmente isso causa comoção. Entretanto, algumas vezes, esses casos não conseguem ficar enterrados (e apagados) na trama das estatísticas; saltam aos olhos e aos corações, como o caso do menino Miguel.

Miguel Otávio, nome de anjo, tinha somente 5 anos quando, por causa da negligência de Sari Gaspar Côrte Real, mulher branca da elite pernambucana, caiu de uma altura de 9 andares. Esse caso, por si só, é um pot-pourri do racismo à brasileira, desnudando muitas das camadas de relações sociais apodrecidas que algumas parcelas da sociedade brasileira querem manter intactas. A mídia tem sua parcela de culpa.

Dizer que a mídia ajudou a empurrar Miguel não quer dizer retirar a responsabilidade das mãos da patroa branca de classe abastada que se recusou a enxergá-lo como criança, mas significa reconhecer todas as vezes em que jornalistas não foram anti-racistas e contribuíram para a estigmatização de corpos negros, naturalizando o fato de tantas outras crianças e adolescentes serem violentamente retirados de suas famílias todos os dias.

Na esquerda Miguel Otávio e na dreita Isabella Nardoni | Foto: Reprodução

Mas o que isso pode nos dizer sobre a desigualdade de gênero? Um caso similar, como foi o da menina Isabella Nardoni, que também tinha 5 anos quando foi brutalmente assassinada e jogada do 6 andar em 2008, tinha uma diferença marcante: a cor das crianças e de suas mães. Quanto vale a dor de uma mulher negra, de classe empobrecida, que trabalha como doméstica, em comparação à de uma bancária de classe média? Não há como pensar a desigualdade de gênero isolada de fatores étnicos e econômicos em intersecção, porque as vidas têm valor diferente na sociedade e na mídia brasileira. As horas de cobertura midiática, as capas de revista, a indignação de grande parte do público, a pressão do judiciário para a resolução do crime… à exceção da similaridade do crime, em nenhum momento os desdobramentos das mortes de Isabella e Miguel se aproximam.

Além disso, temos um outro fator interseccional a ser contabilizado: a localização geográfica, já que o crime de 2008 ocorreu em São Paulo e o de 2020, em Recife. Um crime no “centro econômico e midiático” do Brasil é muito mais explorado enquanto acontecimento, basta contabilizar o que é considerado “noticiário nacional” e o quanto aparecemos nele quando não estamos no eixo Sul-Sudeste do Brasil.

Existe uma desumanização da mulher e mãe negra nas sutilezas do consenso de que ela seria naturalmente mais forte (esse é um argumento tão comum, que a mulher negra recebe, em média, menos anestesia durante o parto), de forma que a mulher negra é historicamente “menos mulher” que a branca. A criança negra também é considerada “menos criança”, do contrário, Miguel estaria vivo agora. Não se trata de convocar a perspectiva sensacionalista de muitas coberturas midiáticas para entender a morte de Miguel, mas de questionar: por que as vidas das crianças e mães negras importam menos?

Texto de:

Nealla MachadoJornalista, Doutoranda e Mestra em Estudos de Cultura Contemporânea pela UFMT, professora substituta no Departamento de Comunicação Social da UFMT.

Tamires Coêlho Professora do Departamento de Comunicação Social e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFMT, doutora em Comunicação pela UFMG e jornalista.

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Observatório de Comunicação e Desigualdades de Gênero da Universidade Federal de Mato Grosso.