De João “de Deus” a Samuel Klein: os abusos sexuais no Brasil e o abandono das vítimas
Os nomes João Faria e Samuel Klein tinham reputação e prestígio. João Faria “de Deus” era um dos líderes religiosos mais midiáticos do Brasil, reconhecido até no exterior, e foi acusado por mais de 500 mulheres de cometer abuso sexual e estupro. Samuel Klein tinha uma biografia considerada exemplar de sobrevivente do holocausto que subiu sozinho na vida e criou uma grande rede de varejo. Construiu também esquema de exploração sexual de crianças e adolescentes que durou até sua morte, e ninguém nunca fez nada.
Relatos das mulheres que, na época, tinham entre 12 e 20 anos de idade, deixam claro uma relação abusiva na qual Klein se aproveitava da condição vulnerável das meninas. O filho dele, Saul Klein é atualmente investigado pelos mesmos crimes, mas alega que é um “Sugar Daddy” (homem rico que sustenta mulheres muito mais jovens, geralmente oferecendo uma vida de luxo como contrapartida de um relacionamento) e que as envolvidas são todas adultas. Ele inclusive admite que “pagou” para as denúncias serem retiradas. Nada acontece e as mulheres continuam sendo exploradas em diversos níveis.
Nenhum dos procedimentos para a responsabilização de Samuel Klein prosperou na Justiça, mesmo com as denúncias feitas, e as acusações a seu filho seguem o mesmo caminho. Um advogado do empresário ouvido pela reportagem da A Pública afirmou que utilizou o recurso de acordos judiciais, com termo de confidencialidade. As provas, segundo ele, eram incontestáveis, incluindo vídeos do ato sexual. João Faria teve mais de 500 denúncias, inclusive de vítimas de outros países, mas só foi condenado por seis crimes e atualmente cumpre a pena em prisão domiciliar. A idade das vítimas de Faria vão de 13 a 67 anos. Ele já havia sido denunciado antes, pelo menos duas vezes, mas os processos foram arquivados.
É assustador que a sociedade, assim como a polícia, a Justiça e a imprensa, tenha fechado os olhos para isso. A Casas Bahia é uma das redes varejistas que mais anunciam na mídia brasileira, conforme descreve a reportagem da Pública. Isso explica muita coisa sobre a pouca repercussão do caso na mídia tradicional, além de contribuir com o senso comum que naturaliza o crime de abuso sexual infantil, da mesma forma que o caso João “de Deus” precisou da denúncia de uma estrangeira para a mídia dar atenção a fatos que já ocorriam há mais de 20 anos e com os quais ninguém se importava. Também foi importante a atuação de grupos feministas para o contato e a proteção das vítimas.
Quantos mais predadores sexuais precisam ser “descobertos” para que aconteça alguma mudança? Os casos de abuso sexual para mulheres adultas prescrevem rápido, impossibilitando a denúncia. E, no caso das crianças, a mudança na lei deu mais tempo para denunciar; mas, quem acredita? E mesmo nos casos em que a denúncia ocorre, a vítima tem que passar por um processo humilhante e degradante, vide o caso Mariana Ferrer. É inaceitável que a Justiça brasileira ignore a responsabilidade de zelar pela dignidade das mulheres, para a proteção de homens brancos poderosos.
As vítimas de Samuel Klein eram periféricas, crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade. As vítimas de João Faria eram mulheres vulneráveis em busca de cura, das mais diversas classes sociais e localidades. As vítimas de Roger Abdelmassih eram mulheres de classe média/alta, que buscavam o sonho da maternidade, com poder aquisitivo e status social. A única coisa que todas têm em comum é o fato de serem mulheres. São esses casos que nos mostram que nenhuma mulher em nosso país está protegida.
Texto de:
Nara Assis, formada em Comunicação Social (Habilitação em Jornalismo) pelo Instituto Várzea-grandense de Ensino (IVE) desde 2009; servidora pública da Secretaria de Estado de Segurança Pública de Mato Grosso desde 2014.
Nealla Machado, professora no Departamento de Comunicação Social da UFMT, Doutoranda em Estudos de Cultura Contemporânea (PPGECCO), Jornalista.