“Ela queria dar o furo”: mulheres jornalistas na mira do mito

Pauta Gênero
pauta-genero
Published in
4 min readNov 8, 2022

“Queria dar o furo a qualquer preço contra mim”. “O que ela faz aqui no Brasil?”. “Cala a boca”. “Dorme pensando em mim”. Como essas palavras e frases te afetam? A nós, duas mulheres jornalistas, incomodam (e muito). Em especial, por serem afirmadas por Jair Bolsonaro, presidente da República — e por terem como alvos nossas colegas de profissão. Esta é uma prática repetida com ênfase por aquele que deveria respeitar e estimular a liberdade de imprensa àquelas e àqueles cujo direito de exercer a comunicação é garantido. Nesta toada, há duas questões incentivadas por Bolsonaro na série de ataques às jornalistas: a repulsa contra a imprensa e a aversão às mulheres.

“A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição”. É assim que a Constituição Federal brasileira determina o que é liberdade de imprensa. Mas, na República de Jair Bolsonaro, essa liberdade vê suas fronteiras restritas àqueles — e especialmente àquelas — que indagam, investigam, inquietam. As limitações são atravessadas, sobretudo, pelo feminino: jornalistas mulheres que protagonizam ataques proferidos por Bolsonaro.

Imagem: Ueslei Marcelino/Reuters

Em uma retomada cronológica, é possível resgatar a ocasião direcionada, em junho de 2019, à Sylvia Colombo, da Folha de S. Paulo. Durante uma entrevista em que questionou o presidente, a jornalista foi constrangida pontualmente. A resposta entregue por Bolsonaro era a de que ele é “apaixonado por ela”. No mês seguinte, o alvo foi outro, mais uma vez, uma mulher: Miriam Leitão, vinculada à Globo. O presidente declarou que a profissional mentiu ao informar que foi vítima de tortura na ditadura militar.

Estas falas inauguram um discurso permissivo que valida a narrativa de preconceitos direcionadas ao feminino e anula o caráter íntegro, neutro e profissional de jornalistas. São, portanto, ataques. Via de regra, são narrativas tecidas às margens de um cenário privado das comunicadoras — com críticas que não se atêm ao exercício da profissão, porém, se desdobram para caminhos de teor sobretudo sexual ou passional. E, veja bem, elas não param por aí.

A insinuação xenofóbica, em uma ocorrência de janeiro de 2020, está expressa na fala de Bolsonaro contra a jornalista Thais Oyama, da TV Cultura, ao citá-la como “aquela japonesa” e que não sabe “o que ela faz aqui no Brasil”. No mês seguinte, Bolsonaro insultou Patrícia Campos Mello, da Folha de S. Paulo, a partir de um recorte estritamente sexual; ele assegurou que ela “queria dar o furo a qualquer preço contra mim”. O jogo de palavras retoma a ideia do furo como ineditismo de uma informação jornalística, mas o discurso do presidente relaciona esse jargão à sexualidade. Em junho de 2021, a repórter Laurene Santos, da Rede Globo, foi o foco do presidente. Aos gritos, ele nomeou a imprensa como “canalha” e direciona um “cala a boca” para a jornalista.

Das conjunturas em que o poder se mostra com mais ênfase, a política e a imprensa podem ser posicionadas em um pódio de desigualdade. É nestes espaços que as construções relativas ao gênero emergem em um movimento intenso; quando o masculino está acima para que o feminino esteja abaixo. Ou seja, via de regra não há possibilidade que vislumbre uma paridade de direitos e deveres — em vez disso, o que infla é a desigualdade com que um ou outro são concebidos.

Neste sentido, o primeiro debate presidencial das eleições de 2022 ocasionou um novo capítulo na história de afrontas do presidente às jornalistas. Vera Magalhães ouviu do líder do Palácio do Planalto que “você é apaixonada por mim”, “dorme pensando em mim”, “tem alguma paixão contida por mim”, e “é uma vergonha para o jornalismo brasileiro”. Na semana seguinte, ainda, Jair Bolsonaro respondeu à repórter Amanda Klein, vinculada à CNN, com um objetivo “seu marido vota em mim”.

Nestas sete ocasiões, é possível perceber o caráter misógino das investidas do presidente. A performance retoma e espelha a retórica agressiva de Jair Bolsonaro — e reitera a cartilha do bolsonarismo no Brasil. Logo, se revela com maestria a conduta que concebe a mulher a partir da construção mais rasa e simplória do gênero feminino: a que está para servir, para silenciar, para gentilmente sorrir e acenar. Assim, as profissionais da imprensa (em conjunto às mulheres na política) aparecem como alvos preferenciais, uma vez que possuem escuta pública; e, por isso, ferem a construção do que poderia ser ou não permitido a uma mulher.

A relação do presidente com a imprensa é ancorada em um comportamento onde o poder é exercido de cima para baixo, em uma verticalização que oprime, segrega, humilha e condiciona. A performance de Jair Bolsonaro vai ao encontro da lógica que confere a um grupo a autonomia para ocupar espaços de poder: o de homens, brancos, heterossexuais, cis e cristãos. Mulheres só ocupam espaços se concordarem e colaborarem com o privilégio masculino e a desigualdade de gênero. Isto é, mulheres que questionam, que combatem, que acumulam respeito devido à idoneidade profissional, são costuradas em um campo que as coloca como “outras” — as burras, as estrangeiras, as apaixonadas, as incapazes, as histéricas, por fim.

Texto de:

Letícia Rossa é doutoranda e mestra em Comunicação, e jornalista graduada pela Unisinos. As pesquisas e investigações são direcionadas a gênero, política e jornalismo.

Laila Melo é mestra em Comunicação pela UnB, e jornalista pela UFG. Investiga discurso, política, estudos culturais e teorias feministas e de gênero.

--

--

Pauta Gênero
pauta-genero

Observatório de Comunicação e Desigualdades de Gênero da Universidade Federal de Mato Grosso.