O que as falas de Xuxa têm a ver com racismo e eugenia
Pessoas famosas passaram a ter uma visibilidade ainda maior com a expansão e utilização das redes sociais para divulgar seus trabalhos. Isso aumentou também a exposição ao público e, consequentemente, o envolvimento em polêmicas devido a declarações racistas. Exemplo recente é da apresentadora Xuxa Meneghel que, em menos de um mês, demonstrou o que é racismo velado e racismo estrutural.
Em outra ocasião, a declaração de Xuxa Meneghel, durante a transmissão de uma live da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj) sobre direitos dos animais, gerou polêmica. A apresentadora defendeu que pessoas privadas de liberdade sejam utilizadas como cobaias na realização de testes de medicamentos e outros experimentos científicos.
Ela chegou a dizer que: “Eles pelo menos serviriam para alguma coisa antes de morrer” e reforçou que há muitas pessoas cumprindo “pena eternamente na prisão”. Essas falas reforçam a cultura do punitivismo, associada à justificativa de dar uma resposta à violência e à desigualdade social brasileira. Também é preciso lembrar que não existe prisão perpétua nem pena de morte no país. Segundo o que versa a Lei 13.964/2019, o prazo máximo de privação da liberdade é de 40 anos.
É necessário ainda refletir sobre os reais efeitos da punição e do encarceramento no Brasil. Entre 2005 e 2016, a população carcerária quase triplicou, ao passar de 294 mil presos para 726 mil, conforme dados do Infopen, publicados pela ONG Conectas. Atualmente, há aproximadamente 760 mil pessoas presas e monitoradas eletronicamente no país.
Na contramão, temos o aumento da violência. A taxa de homicídios cresceu 10,6% de 2005 a 2015, segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Portanto, o encarceramento em massa não tem reduzido os índices criminais. O sistema prisional brasileiro tem sido alvo de críticas e intervenções há anos em função das condições insalubres e desumanas oferecidas a essas pessoas.
Declarações como as de Xuxa não são incomuns. O jornalismo sensacionalista, verificado especialmente nos programas televisivos das emissoras brasileiras, também se dedica a incentivar o punitivismo penal e, além disso, usa crimes para o entretenimento. Em Mato Grosso, programas como o Cadeia Neles, descendente direto do famoso programa Cadeia Sem Censura, de Carlos Alborghetti, que batia na mesa com um porrete de madeira, bombardeiam o horário de almoço da população com crimes bárbaros. Neles, os apresentadores só expõem uma solução: Cadeia neles.
A fala da ex-apresentadora também pode ser considerada eugenista, ou seja, uma fala que compactua com um movimento que buscava produzir uma “seleção nas coletividades humanas”, baseada em supostas pesquisas que diferenciariam os seres humanos. No Brasil, essa teoria foi utilizada como um projeto político extremamente racista, já que o movimento ganhou força no período pós-abolição de escravidão, no século 19.
O sistema carcerário tornou-se uma extensão desse projeto. O 14º Anuário Brasileiro de Segurança Pública mostra que em 15 anos a proporção de negros no sistema prisional cresceu 14%, enquanto a de brancos diminuiu 19%. Ou seja, a cada três presos, dois são negros.
Diante da repercussão, Xuxa fez um vídeo em que pediu desculpas. Contudo, no mesmo vídeo, ela reforçou que quando defendeu os testes se referiu a pessoas que cometeram crimes graves. Cabe destacar que na transmissão da live ela mesma reconheceu que iriam rechaçar sua fala, especialmente o “pessoal dos Direitos Humanos”. Essa atitude mostra que as declarações foram feitas de forma consciente e que o vídeo de desculpas foi gravado para evitar um desgaste maior de sua imagem.
Além disso, durante entrevista à atriz e apresentadora do Programa Superbonita, Taís Araújo, Xuxa disse que se pudesse queria ter nascido “com a cor, o cabelo e a pele” de Taís. Xuxa também usou o termo “bronzeada” como referência. Diante da fala, é irônico ao se pensar nessa possibilidade logo quando o assunto é a ex-apresentadora.
Xuxa se consolida entre as crianças não só pelas habilidades como apresentadora, mas também pela aparência “angelical” construída com a ajuda midiática. Uma mulher branca, loira, que é mocinha ou princesa na televisão, como uma barbie, é tudo a que um Brasil profundamente racista estrutural dá audiência. Não é à toa que as assistentes de palco, as paquitas do “Xou da Xuxa” são semelhantes à própria artista. Quantas apresentadoras como Taís Araújo têm carreira tão longa e consolidada quanto a de Xuxa?
Todos precisamos ter responsabilidade sobre nossas atitudes nas redes sociais e, acima de tudo, buscar aprender sobre as questões relativas a raça, gênero e classe, frente às desigualdades cotidianas e históricas. Essa responsabilidade deve ser ainda maior quando se trata de pessoas públicas, com grande alcance de seguidores nas redes sociais, especialmente pessoas brancas, historicamente privilegiadas no contexto brasileiro. O preconceito, a desumanidade e a indiferença têm um efeito devastador na formação de opinião pública e, sem esse senso crítico, a luta antirracista não avança.
Texto de:
Millena Teixeira Barros, estudante de Jornalismo da Universidade Federal de Mato Grosso.
Nara Assis, formada em Comunicação Social — Habilitação em jornalismo pelo Instituto Várzea-grandense de Ensino (IVE) desde 2009; servidora pública da Secretaria de Estado de Segurança Pública de Mato Grosso desde 2014