Quem pode sair de casa?

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4 min readDec 8, 2021

Mulheres e o medo da importunação sexual em deslocamentos pelas cidades

Em muitas cidades, empresas de metrô separam vagões somente para usuárias com intuito de evitar casos de importunação sexual — Fábio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

O som inconveniente e invasivo do “Fiu, fiu” pode se tornar assustador se você é uma mulher que o ouve enquanto se desloca sozinha, seja por uma rua escura, seja pelo dia ou pela noite. Essa sensação de insegurança para além do lar (não que o ambiente doméstico traga segurança para mulheres) é justificada. A pesquisa Percepções sobre segurança das mulheres nos deslocamentos pela cidade evidenciou que 77% das entrevistadas consideram os espaços públicos mais perigosos para elas do que para homens e que 81% delas já sofreram violência em suas locomoções urbanas. Em 2021, mulheres foram mais alvo de importunação sexual (35%) do que de roubos ao se deslocarem pelas cidades brasileiras e sete em cada dez mulheres já receberam olhares insistentes e cantadas inconvenientes em deslocamentos. A lei brasileira tipifica importunação sexual como um ato praticado “contra alguém e sem a sua anuência, ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro”, a pena é de um a 5 anos de reclusão (Lei nº 13.718, de 24 de setembro de 2018).

Apesar da lei, cenas cotidianas reforçam o sentimento de não estarmos seguras em locais públicos. Manchetes como “Homem é preso após passar a mão no corpo de mulher que trabalhava em avenida de Apucarana” e “‘Não consigo mais ir trabalhar sozinha’, diz mulher assediada no meio da rua” são, infelizmente, constantes em noticiários brasileiros. Dos vários casos que causam revolta, trago o protagonizado por Andressa Lustosa (25). Enquanto pedalava, em Palmas (PR), um carro se aproximou e um dos homens que estavam no veículo passou a mão pelas partes íntimas dela, fazendo-a cair e se machucar. Ela afirma que “por ser uma rua larga, [não foi] sem querer, não tinha possibilidade [de ser sem querer]”.

Mesmo no transporte público esse cenário se repete. “As mulheres sentem medo em seus deslocamentos, sobretudo nos meios de transporte públicos”, aponta estudo, ao revelar que 54% das brasileiras já sofreram importunação sexual em ônibus. Meninas, adolescentes e mulheres sofrem contatos físicos sexuais não permitidos, são alvo da masturbação masculina e até de ejaculação dentro de veículos públicos. Em Uberlândia (MG), em quatro meses, um homem foi preso duas vezes por importunação sexual em ônibus público. Quando o agressor é desmascarado, constrangido, há uma falsa sensação de justiça, mas não há garantias sobre a reincidência da agressão. No Rio de Janeiro (RJ), Mariana Muaharre (21) filmou o importunador sexual do ônibus e, em Belém (PA), uma mulher (não identificada) rendeu o homem pelo pescoço com os braços e o deitou no chão depois que ele se aproveitou do transporte público cheio para se esfregar nela.

Se a opção das mulheres é ir em carros de transporte por aplicativo, a insegurança continua ou até piora, visto que o poder do deslocamento é de quem está ao volante. São comuns casos como o da adolescente (17) (não identificada), moradora da região metropolitana de Porto Alegre (RS) que foi alvo de comentários invasivos feitos por um motorista de aplicativo e, por isso, gravou a situação. “Primeiro eu fiquei nervosa e não acreditava que aquilo estava acontecendo comigo. […] Eu dei risada de nervosa, de desconforto com a situação. E também tinha medo de ser grossa com ele e ele mudar a rota”, confessa. O medo da garota é o mesmo de tantas mulheres, além de ser importunada, sofrer a violência física, o estupro. Por isso, é comum que mulheres compartilhem suas rotas, informem onde estão por ligações reais ou fictícias ou, como sugere a influencer Paula Albaro, usem áudio para coibir um possível violentador.

A importunação sexual demonstra a atuação da cultura do estupro, que se apropria do corpo da mulher com o objetivo de prazer do homem. Quando ele se aproveita de um ônibus/metrô cheio e se esfrega em uma mulher, ou se masturba, ou até usa do poder de estar ao volante de um carro com uma passageira e a constrange, ou “dá uma cantada” em uma mulher na rua, por exemplo, o homem reafirma o discurso patriarcal de que “ela está ali para satisfazê-lo”. Porém, esse discurso também age no subconsciente de mulheres. Somos socializadas a fingir que situações como essas não acontecem, naturalizamos, às vezes sequer entendemos que houve a violência. Por isso, mulheres tendem a se autoculpabilizar pelas agressões masculinas, têm dificuldade de reagir, falar dos abusos e assédios, e até mesmo de denunciar. Isso explica, por exemplo, casos como o das reações de Mariana Muaharre e o de Belém virarem notícia, seriam casos excepcionais. Enquanto esse cenário não muda (a esperança continua), brasileiras têm adotado medidas para se sentirem mais seguras, tais como evitar locais desertos/escuros (88%), evitar sair à noite (88%), evitar sair com certos tipos de roupa ou acessórios (72%), escolher um lugar para sentar no transporte coletivo com foco em segurança (73%). São medidas que, apesar de trazerem maior sensação de proteção, comprometem a autonomia e a liberdade dessas mulheres.

Também precisamos compreender que existem mulheres mais vulneráveis em suas locomoções pelas cidades, como aquelas empobrecidas que caminham quilômetros em seus trajetos pelas ruas ou que precisam usar vários transportes públicos diariamente. As mulheres negras também integram esse grupo, pois 67% delas já sofreram racismo quando estavam se deslocando a pé. A população LGBTQI+ se soma a essas estatísticas, e isso é refletido na percepção de maior risco de violência associada ao deslocamento de pessoas trans e homossexuais, por exemplo, problema que sequer é visibilizado nas pesquisas. Há de se considerar que o ir e vir é um direito humano garantido pelo Artigo 5º Constituição Federal brasileira, porém, a insegurança e a violência ainda atravessam nossos trajetos todos os dias. Até quando?

Texto de:

Laila Melo, é mestra em Comunicação com ênfase em Política, Discurso e Estudos Feministas e de Gênero pela Universidade de Brasília (UnB) e jornalista graduada pela Universidade Federal de Goiás (UFG).

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Observatório de Comunicação e Desigualdades de Gênero da Universidade Federal de Mato Grosso.