Racismo ambiental: quanto direito à vida tem uma mulher negra?

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4 min readJul 14, 2022

Aos 13 anos, uma enchente inundou a minha casa, no Jardim Aracati, periferia de um centro urbano na cidade de São Paulo. Lembro de estar sozinha naquele dia e me desesperar com a força e volume da chuva, além, claro, da possibilidade de perder os únicos móveis que tínhamos na época. Durante o período em que a água não diminuía, pensava que poderia perder o mais elementar: a vida. Embora comuns e bastante recorrentes no cotidiano de centenas de pessoas brasileiras, é necessário e urgente olharmos para a questão da degradação ambiental e das mudanças climáticas de forma racializada, e, sobretudo, na perspectiva de gênero.

TV Brasil/Reprodução

A discussão sobre o meio ambiente recai, em muitos casos, na reflexão de como as atividades humanas, estimuladas pela maneira de produção e consumo, são as principais responsáveis pela intensificação da crise climática, queimadas, poluição do ar, exposição de resíduos tóxicos, desastres industriais, falta de saneamento básico, moradias precárias e contaminação do solo, além do próprio efeito estufa. Contudo, é preocupante notar a pouca importância dada aos riscos e consequências causados pelo impacto ambiental para determinadas populações, que foram historicamente vulnerabilizadas, cujos corpos são pretos, indígenas, quilombolas e não-brancos, residentes na zona rural ou nas periferias das grandes cidades.

Na prática, podemos relacionar este cenário com a materialização do racismo ambiental em nossa sociedade. Trata-se de um conceito pouco difundido, referido pela primeira vez em 1982 pelo ativista estadunidense Benjamin Chavis, que retrata como a discriminação racial, aliada à falta de políticas públicas ambientais e o pouco apreço do Estado pelo tema, são evidências objetivas de desinteresse na solução do problema, tendo em conta um passado colonial repleto de heranças desiguais e o apagamento e silenciamento das vítimas durante toda a história. O racismo estrutural é construído no seio das instituições, ainda orientadas por valores elitistas, e por meio delas sempre que o Estado está ausente ou é ineficiente para uma parte muito específica da população.

Entretanto, à época da enchente que alagou a minha casa, o termo racismo ambiental não havia sido debatido. Não interessava à comunidade um nome para o que vivíamos muito frequentemente durante os meses mais propícios a chuvas prolongadas. O racismo ambiental está posto para uma parcela de pessoas negras e povos tradicionais, assim como a falta de acesso à informação, a serviços e à justiça: não há possibilidade de escolha.

Refletindo sobre os meus 13 anos e os problemas causados pelos temporais naquela época, percebo que mulheres e meninas residentes em territórios invisíveis sofrem graves violações de seus direitos cotidianamente, considerando que, nos caminhos para exercê-los, elas se deparam com uma série de injustiças ambientais que tira tudo ou o pouco que resta. Portanto, cabe destacar que não está em discussão o fato de as mulheres serem sistematicamente impedidas de participarem dos processos políticos, ou o empobrecimento e invisibilização causados pela falta de garantias básicas, como o direito a uma moradia digna — que as afeta de forma específica. A limitação sobre esta discussão é estrutural, assim como o racismo.

Se por um lado temos um governo ativamente hostil em relação à ambição das mulheres negras, indígenas e quilombolas de terem uma vida de qualidade, por outro lado, o mesmo governo usa do seu poder social e político para determinar como algumas pessoas podem viver e como outras devem morrer, a exemplo da priorização e investimento em gastos com a importação de armas e a redução e corte de verbas destinadas para pesquisa e combate aos desastres naturais e mudanças climáticas. Este é o saldo da injustiça ambiental.

Entre os meses de janeiro a maio de 2022 foram registrados 478 óbitos por consequência do excesso de chuvas — como deslizamentos de terras, afogamentos e enchentes — 57% a mais do que no ano anterior. O aumento expressivo de mortes em um período curto de tempo diz muito sobre a forma como nos estruturamos e como hierarquizamos socialmente diferentes grupos sociais. Além disso, é bastante significativo, do ponto de vista das questões de gênero, raça e classe, evidenciar quais corpos têm sido frequentemente atingidos. Dos 129 mortos em decorrência das fortes chuvas que atingiram Pernambuco recentemente, 71 eram mulheres. Das 232 vítimas da catastrófica chuva que atingiu Petrópolis, no Rio de Janeiro, no início de 2022, as mulheres também equivalem a mais da metade das vítimas fatais, totalizando 138 óbitos.

Dados do Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades (Made-USP) revelam que, embora a população negra seja 54% dos adultos, essa representa 70% do décimo mais pobre da população. Ou seja, pessoas negras, sistematicamente mais afetadas pela degradação ambiental no Brasil, são os 10% da população com menores rendimentos. Os caminhos de enfrentamento desse cenário passam, antes de tudo, pela garantia mínima de renda para grupos étnicos que há anos lutam contra a violência do racismo ambiental, possibilitando outras perspectivas fora de áreas e espaços inseguros, levando em conta as desigualdades plurais enfrentadas de forma individual e coletiva. É imprescindível que haja desenvolvimento sustentável, que dê conta do problema da injustiça ambiental e reconheça a luta histórica das mulheres negras e as contribuições feitas por elas ao longo do tempo, tornando-as parte essencial do processo de repensar o modo de vida da atual e das futuras gerações.

Julia Cruz é graduanda em Comunicação com ênfase em Jornalismo da Universidade Paulista (UNIP). Pesquisa direitos sexuais e reprodutivos na organização ARTIGO 19 Brasil.

Laís Borba Brito é jornalista e mestranda em Estudos da Mídia pelo PPgEM — UFRN. Pesquisa violência simbólica de gênero em produtos midiáticos.

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Observatório de Comunicação e Desigualdades de Gênero da Universidade Federal de Mato Grosso.