Racismo linguístico? Entenda o que é e como combatê-lo

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3 min readJun 29, 2021

Como um dos organismos fundamentais para compreensão do mundo e construção de sentidos da realidade, a linguagem não é neutra, ao contrário do que se possa pensar. Nesse sentido, é indispensável lançar olhares para os discursos e ideologias velados formadores da língua e de seus termos. Muitas vezes, expressões aparentemente inofensivas incorporadas no dia-a-dia atravessam os séculos e revelam heranças de tempos coloniais, e como sociedade erguida a partir da lógica escravocrata, a língua portuguesa também reverbera tal configuração social.

Fonte: Lélia Gonzalez by Cézar Loureiro

O país carrega um profundo racismo, inclusive na sua história linguística, também reprodutora de preconceitos. Há tempos, intelectuais se dedicam a estudar as relações entre linguagem e racismo, a exemplo da antropóloga, historiadora e professora Lélia Gonzalez, que chamava a atenção para essa questão já nos anos 1970, ao definir a língua falada aqui como “pretuguês”. A cientista social observou a repulsa às marcas africanas em nosso idioma, mas que, simultaneamente, já estavam incorporadas na língua. Uma dessas marcas é a troca de ‘l’ pelo ‘r’, pois, em um idioma africano o l inexiste, todavia, quando isso ocorre, subitamente a troca pela forma “correta” é feita. Podemos ver essas marcas lexicais em uma série de regionalidades, como em Cuiabá, na fala de palavras como “bicicreta” e “crima”.

Diversos fatores corroboram para perpetuar a violência presente na linguagem. Há inúmeras palavras e expressões que carregam a marca racista e devem ser extintas do vocabulário. Muitas delas são noções usadas de modo automatizado no dia-a-dia de forma que sequer recebem atenção quanto ao seu significado. Como exemplos, temos “a coisa tá preta”, expressão racista para se referir a uma situação desagradável; “denegrir”, sugerindo o tornar negro ou escurecer como algo negativo quando usado nesse contexto; “mercado negro”, no mesmo sentido, ou “mulata”, originário da palavra mula.

No entanto, para além de repensar termos, é necessário identificar as formações discursivas. Segundo Lélia Gonzalez, em um recorte ainda mais específico, mulheres negras sequer possuem o direito a seus próprios discursos, pois, além de serem infantilizadas, soma-se a concepção racista de que são corpos sem capacidade de cognição. Assim, são enquadradas em discursos de terceiros.

Dentre as incontáveis feridas que sangram, provocadas por essa ideologia de dominação de corpos, a colonização, a língua não passou imune. Ainda que existam marcas africanas em nosso idioma, o linguicídio, com o apagamento de línguas, resultou de uma intenção de unificação de culturas, em detrimento daquelas que escapam da matriz eurocêntrica.

O combate ao racismo passa inevitavelmente pela desconstrução social de todas as estruturas discriminatórias, incluindo a própria linguagem. Desta maneira, seria possível pôr fim a atos de violência verbal que reforçam estereótipos contra a população negra. Os resquícios do regime escravocrata nos acompanham há séculos e exigem mudanças profundas, se o objetivo realmente for construir uma sociedade que corrija disparidades históricas. Afinal, a língua revela muito do que pensamos e, por esse motivo, não pode ser menosprezada como elemento nos processos de relações de poder.

Texto de:

Magali Moser, doutoranda e mestra em Jornalismo na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)

Maryelle Campos, estudante de Jornalismo da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT)

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Observatório de Comunicação e Desigualdades de Gênero da Universidade Federal de Mato Grosso.