Rivalidade feminina:

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5 min readApr 14, 2022

A quem interessa manter o mito de “inimigas eternas”?

Gabriel, Camille e Emily. Série: “Emily em Paris” (Foto: Divulgação/Netflix)

Uma mãe leva o filho de quatro anos para a escola e o ajuda a descer do carro. Uma cena cotidiana. Porém, uma polêmica se instaurou pelas redes sociais, pois a filmagem mostrava a advogada e modelo boliviana Vanessa Medina, que vestia um macaquinho de malha curto, usado para praticar exercícios físicos. Na gravação, uma mulher “indignada” diz: “Olha a bunda dela! É por gente assim que vou mudar meu filho de escola. Que nojo!”. Mas o que incomodaria uma mulher ao ver outra vestida com roupas de academia ao levar o filho para a escola? As falas das outras mães retomam a ideia de que Vanessa poderia instigar os desejos de seus maridos. Esse episódio foi real, gravado e circulou pelas mídias. Elaborações patriarcais discursivas (que estão em nossas falas, vivências do cotidiano e das mídias) colaboram, ao longo da história, com a construção imaginária de que “uma mulher não é amiga da outra”. Assim, nós não somos apenas encorajadas a não nos relacionarmos com outras mulheres, mas também a não nos apoiarmos socialmente. Isso implica uma desarticulação entre mulheres. A quem interessa manter o mito de que “mulheres devem ser inimigas eternas”?

Quando crianças, ouvimos e vemos contos de fadas nos quais a princesa não tem bons relacionamentos com outras mulheres. Ela não tem amigas, as madrastas a querem morta ou enclausurada, não podem confiar nem em irmãs (Cinderela que o diga!). A única mulher merecedora de confiança seria a mãe, mas ela tende, antes mesmo da narrativa começar, a ter um fim trágico. Essa perspectiva de aliança impossível entre mulheres não se restringe à construção das subjetividades infantis. Dois exemplos memoráveis dessa elaboração midiática da rivalidade feminina “necessária” é a das irmãs gêmeas Ruth e Raquel (da novela “Mulheres de Areia”, de 1993), e de Paola e Paulina (de “A Usurpadora”, de 1998). Nas narrativas, a argumentação é evidente: “não se deve confiar nem mesmo em sua irmã gêmea!”.

As décadas passam e os discursos da inimizade se realinham e se multiplicam. Nesse sentido, é interessante observar a figura masculina como alguém a ser disputado é recorrente nas nossas representações sociais. Podemos visualizar isso na série da Netflix “Emily em Paris”, lançada em 2020. Nela, duas amigas (Emily e Camille) disputam amorosamente o mesmo homem (Gabriel) e têm a amizade arruinada perante esse impasse. Além de não ser responsabilizado pelos atos dele (de traição), ele é posto apenas como coadjuvante das escolhas, já que são elas que decidem com quem ele deve ou não “ter um final feliz”.

Ao sairmos das telas, percebemos como essa construção imaginária da desarticulação entre mulheres atua em nossas realidades, como no caso de Vanessa Medina. Esse fato retoma um discurso patriarcal de que um homem é instruído a agir por instinto e não consegue se controlar perante quem o atrai. Assim, se constrói a figura da amante, aquela que sempre é a “culpada” pelo desvio masculino. Dentro dessa elaboração, podem ser percebidos vários problemas: o primeiro é a visão de que “o homem heterossexual comprometido seria um irresistível para outras mulheres”, implicando uma formulação de rivalidade sobre “não falar bem do companheiro para sua amiga”. O segundo problema é que o homem branco e heterossexual não tende a ser responsabilizado pelos próprios atos, apontando para uma “natureza biológica dos homens de não conseguirem se controlar” em relação a outras “mulheres desejáveis”. Isso corrobora com a cultura do estupro, em que o corpo feminino está a serviço do desejo do homem.

Para além da disputa por homens, a cultura patriarcal articula modos de ser e estar no mundo solitário para mulheres. Isso pode ser percebido por meio da construção linguística. “Fraternidade” se refere à amizade entre homens, mas uma palavra que faz essa associação entre mulheres não possui equivalência na língua portuguesa. Dessa forma, se percebe que a relação de amizade é naturalizada socialmente apenas entre eles. Podemos observar isso em reality shows, como o Big Brother Brasil (BBB), em que os homens comumente se organizam em um grupo, enquanto mulheres tendem a rivalizar umas com as outras. Essa inimizade também se materializa em competições no mercado de trabalho e pela busca do corpo perfeito, alimentada por concursos de beleza e, de modo mais recente, pelas interações em redes sociais.

Como forma de ação política, feministas criaram, na década de 1970, em muitos países, o termo “sororidade”, em referência à aliança entre mulheres. Décadas depois, a palavra ainda é desconhecida. Manu Gavassi, ao participar do BBB 20, usou o termo e causou uma chuva de buscas pelo significado dela na internet. Apesar de certo esvaziamento feito pelo capitalismo, ao cooptar o termo e estampá-lo, por exemplo, em camisetas, e até mesmo a utilização banal da terminologia por mulheres, sororidade deveria ser compreendida como a aliança destinada a uma ação política com tempo e pauta definida.

Sororidade se apresentaria como a união de mulheres eleitas para cargos de poder e tomada de decisão (como vereadoras, deputadas, senadoras), buscando a manutenção e avanço de direitos de mulheres. Seria pensar na ex do seu atual companheiro amoroso não como rival, mas como alguém que poderia te alertar para uma potencial relação abusiva. Seria compreender que aquela mãe que levou o filho para a escola com roupa de academia, assim como outras mães, tenderia a ter uma rotina exaustiva e que, o momento do dia que teria para praticar atividades físicas estava entre levar ou buscar o filho na escola (e que não há problema algum de se vestir como ela bem entender!). Se algum homem comprometido a abordasse com uma cantada, ele é quem deveria ser interpelado.

Algumas músicas já têm abordado isso, como “A culpa é dele”, composta por Marília Mendonça e a dupla Maiara e Maraísa (e baseada em uma história real), ou como Valesca Popozuda, ao regravar a música “Beijinho no Ombro” e mudar a primeira versão da música que chamava outras mulheres de “inimigas”, eliminando a ideia de competição. A rivalidade feminina não beneficia mulheres. Pelo contrário, é o patriarcado que ganha com a nossa desarticulação.

Texto de:

Laila Melo é mestra em Comunicação com ênfase em Política, Discurso e Estudos Feministas e de Gênero pela Universidade de Brasília (UnB) e jornalista graduada pela Universidade Federal de Goiás (UFG). @melo_laila

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Observatório de Comunicação e Desigualdades de Gênero da Universidade Federal de Mato Grosso.