Uma cobertura midiática infiel a Marília
Marília Mendonça fez sucesso com o gênero musical mais consumido no Brasil atualmente, o sertanejo. Nascida no interior de Goiás, rompeu as fronteiras do Brasil e do mundo e se tornou a Rainha da Sofrência, título que recebeu do público por cantar e escrever canções que tratam de um sofrimento amoroso. Compôs a primeira música aos 12 anos, e, em 2020, foi a artista mais ouvida no Spotify, Deezer e Youtube. Foi indicada ao Grammy Latino pela categoria Álbum de Música Sertaneja em 2017. Venceu o prêmio, em 2019, com o projeto “Todos os Cantos”, em que gravou músicas em shows gratuitos por todas as capitais do Brasil. Em 2021, concorreu ao Grammy pela mesma categoria.
O sucesso também foi evidenciado em lives no início da pandemia da Covid-19. Ela bateu recordes de audiência no Youtube ao ser vista por mais três 3 milhões de contas da plataforma em uma única apresentação. Além disso, rompeu barreiras dos gêneros musicais ao fazer parcerias com Luísa Sonza, Xamã, Ivete Sangalo, Anitta e Gal Costa, por exemplo. Como compositora, assina mais de 300 músicas interpretadas também por homens. Em 5 de novembro de 2021, uma notícia abalou uma multidão de fãs e chegou a veículos de comunicação internacionais: um acidente aéreo causou a morte precoce da artista, aos 26 anos, e de mais quatro pessoas que estavam na aeronave. Para além da morte trágica, a cobertura midiática de sua morte causou repulsa, com exposição dos corpos das vítimas e discursos misóginos que visavam desqualificar o legado da cantora.
A morte de Marília Mendonça deixa a certeza de que projeção midiática, dinheiro e sucesso não blindam uma mulher da misoginia: se, por um lado, ela era uma artista brasileira (e não apenas do Centro-Oeste), conhecida e tocada de Norte a Sul do Brasil, por outro, um dos aspectos mais rememorados nas “homenagens” após sua morte foi o fato de não ter tido um corpo considerado “adequado” ou atraente pela sociedade patriarcal. Para uma suposta “análise” da Folha, prêmios, números e sucesso não importam, ela “nunca foi uma excelente cantora” e não teria um “visual atraente” para o mercado, afinal ela seria a própria mercadoria, mais uma “gordinha” que “brigava com a balança”. O podcast Café da Manhã trouxe uma entrevista em que a fonte desqualifica a voz da cantora, que não seria afinada e que nem havia estudado música, ao contrário de Maiara e Maraísa (mais uma vez recorrendo à cruel comparação entre mulheres). Nenhuma crítica similar é acionada em textos que lamentam a morte de cantores homens de grande sucesso.
Ana Maria Braga chegou a lamentar que ela tivesse morrido justamente quando conseguiu emagrecer: “Ela fez tanto pra chegar nesse shape lindo, físico, né? Ela emagreceu, criando um caminho pra ela, que fazia sentido, com esse vozeirão. E, de repente, ironia do destino que morreria dali a quatro, cinco dias”. O apresentador do Domingão, na rede Globo, Luciano Huck, tentou fazer piada também com o corpo da cantora, que havia se apresentado recentemente no programa com Maiara e Maraísa: “Há três semanas eu estive com elas, aliás, metade das três, porque elas estavam magrinhas”. Não importa uma carreira meteórica quando não se tem um corpo padrão, nem após a morte deixamos de ser desrespeitadas. A desumanização da mulher e a objetificação de seu corpo não têm limites e se tornam um trampolim de visibilidade para comunicadores irresponsáveis, pegam carona na tragédia para viralizar absurdos.
Não foi cantando para homens que ela conseguiu furar a bolha de um reduto masculino como o sertanejo. Marília afirmava que seu sucesso estava justamente em fazer músicas para mulheres, um nicho de mercado negligenciado ao longo dos anos. “Antes, as mulheres tinham que ouvir a música voltada para o homem. Mas mulher também trai, bebe, não aguenta homem folgado”, argumentava. Outras artistas do gênero fizeram sucesso antes dela, mas havia um ineditismo nas canções da goiana. “Não queríamos ser aquela boneca em cima do palco, que se comporta como bela, recatada e do lar (…). Nós conversamos com as mulheres como se elas fossem amigas, e não rivais”, afirmava. Ao lado de cantoras como Maiara e Maraísa, Naiara Azevedo, Simone e Simaria, Thaeme e tantas outras, foi responsável por lançar um novo segmento, o Feminejo. O termo foi adotado pela mídia brasileira para nomear a geração de cantoras de sertanejo que fala de e para mulheres e, durante a cobertura da morte de Mendonça, chegou a ser traduzido pelo The New York Times em seu obituário.
Mesmo sem se identificar nomeadamente como feminista, as músicas da artista rompiam com a ideia de discursos patriarcais ao defender a amizade entre mulheres, ao questionar a fantasia de um amor romântico com um “felizes para sempre”, ao falar da sexualidade feminina e até mesmo ao lembrar que mulheres também bebem álcool, entre tantas temáticas disruptivas, se comparadas ao sertanejo de compositores e cantores homens. Para pesquisadoras como Damiany Coelho, emancipação sentimental e sororidade eram marcas de sua obra. É preciso lembrar ainda do projeto As Patroas, ao lado de Maiara e Maraísa, que também tratava de temáticas interpeladas pelo feminismo, como o empoderamento de mulheres e o combate à violência contra elas.
Podemos pensar Marília a partir de um retrato interseccional, já que era mulher em um nicho musical até então extremamente masculino, não se encaixava em padrões misóginos e gordofóbicos de um corpo ideal, não era do Sudeste. É interessante perceber como esses elementos são acionados para diminuir a projeção dela nos conteúdos pós-morte, a maioria das abordagens sequer poderia ser considerada “homenagem” ou compilado de sua trajetória. A questão de haver sucesso ligado a um corpo feminino não padronizado é invariavelmente mais acionada que a carreira em si.
Não bastasse o choque da morte por si só, a mídia fez o desserviço de despertar um gatilho perigoso em muitas mulheres brasileiras: não importa quão inovadora você seja, ou o tamanho da projeção nacional, o tanto de dinheiro que tenha, o fenômeno mundial que tenha sido sua obra: se você é mulher e não cabe naquele padrão estético hegemônico, você não é tão boa assim. Sorte a nossa que a voz de Marília Mendonça não pode ser silenciada, já que, mesmo tão jovem, deixou uma obra extensa e provocativa, além de novos parâmetros de sucesso e alcance para o sertanejo. O legado da artista continua.
Texto de:
Laila Melo, é mestra em Comunicação com ênfase em política e Teorias Feministas e de Gênero pela Universidade de Brasília (UnB) e jornalista graduada pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Eterna fã e admiradora do trabalho de Marília Mendonça.
Tamires Coêlho, é doutora em Comunicação, professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), jornalista e reconhecedora do impacto da obra de Marília Mendonça para os estudos de Comunicação, Música e Gênero.