Zé Leôncio e o abandono parental romantizado na novela Pantanal

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3 min readOct 26, 2022

Passados sete meses no ar, o remake da novela Pantanal terminou no início de outubro de 2022, após conseguir juntar uma grande audiência e se provar um sucesso, como a versão original, exibida há 32 anos, na extinta TV Manchete. A história criada e escrita por Benedito Ruy Barbosa foi atualizada pelo neto dele, o também autor Bruno Luperi, e conta uma saga familiar sobre os Leôncio e os Marruá, e tem como cenário um dos mais ricos ecossistemas do mundo, o Pantanal.

No entanto, para além de memes e de diversos comentários em relação ao sotaque dos personagens nas redes sociais, outro ponto chamou bastante a atenção de quem acompanhou a novela: a relação de Zé Leôncio (Marcos Palmeira) com seu pai e com seus filhos na trama. Desde o início da novela, a audiência, através das redes sociais, aponta comportamentos ditos “tóxicos” do personagem, sobretudo, em relação à paternidade de Jove (Jesuíta Barbosa), Tadeu (José Loreto) e José Lucas de Nada (Irandhir Santos).

Na trama, Zé Leôncio exigia demais dos filhos, estabelecendo comparações entre os três, ao mesmo tempo que minimizava os feitos e as qualidades deles. Paralelamente, o personagem buscava o próprio pai, Velho do Rio/Joventino (Osmar Prado) de uma forma obsessiva, se sentindo abandonado por esse personagem que foi “pegar marruá no encanto” e nunca mais retornou, se tornando uma espécie de “espírito guardião” do Pantanal.

Só que o próprio Zé Leôncio reproduz o comportamento incompreendido do pai, abandonando os três filhos, ainda que ele mesmo não tenha sido “abandonado” antes da vida adulta. Jove, o primeiro filho conhecido na trama, cresceu acreditando que seu pai estava morto, mas Zé Leôncio sabia onde poderia encontrar o filho: na casa de sua avó, no Rio de Janeiro, onde o jovem cresceu ao lado da mãe (Madeleine). Zé Leôncio optou por pagar a pensão e nunca visitar o filho pessoalmente. Enquanto Jove foi criado com o apoio financeiro, mas sem o suporte emocional, Tadeu sempre esteve por perto, mas nunca teve direitos financeiros, nem o carinho do pai — sempre foi tratado como um dos peões da fazenda de Zé Leôncio. O personagem, inclusive, nunca foi registrado pelo pai, e durante toda a infância e adolescência foi chamado de afilhado por Zé. No último capítulo da trama, descobrimos que Tadeu não é filho biológico de Zé Leôncio, mas ele diz que Tadeu é um “filho do coração” e, por isso, tão filho quanto os outros, ainda que, durante toda a trama, tenha sido tratado de forma diferenciada.

O terceiro filho que aparece na história é José Lucas de Nada, que é, segundo o mesmo, “filho e neto de puta”, pois sua mãe trabalhava em uma “currutela”, engravidou de Zé Leôncio e foi abandonada por ele. José Lucas é “de Nada” porque não tem o nome do pai no registro. Ele não é o único, de acordo com dados da Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen-Brasil), e obtidos a partir do Portal da Transparência do Registro Civil, de janeiro a abril de 2022, foram registrados 56,9 mil bebês por mães solo, ou seja, sem o nome do pai, o maior número em comparação com o mesmo período de anos anteriores.

Podemos perceber que Zé Leôncio é um retrato da paternidade nos rincões do país. Apesar de ser descrito pelos personagens enquanto um homem “bom” e “honrado”, nunca cuidou de nenhum filho, deixando essa difícil tarefa para as mães. Não bastasse isso, com os filhos já grandes, Zé Leôncio estabelece competições entre eles, para saber qual deles é “mais digno” de seu amor.

Apesar de seu final redentor na novela, é interessante pensar o quanto o personagem constrói um modelo de paternidade que é seguido ao longo dos anos. Mesmo após três décadas, desde a versão original, o personagem Zé Leôncio continua atual, pois a paternidade ainda é vista somente enquanto “pagar pensão”. É importante destacar também que só algumas mulheres são “dignas” de receber esse pagamento, como a Madeleine; outras, como a mãe de José Lucas de Nada, são completamente abandonadas e esquecidas, até mesmo na trama da novela.

Nealla Machado é Jornalista, Professora do Departamento de Comunicação/ UFMT e Doutora em Estudos de Cultura Contemporânea/PPGECCO.

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Observatório de Comunicação e Desigualdades de Gênero da Universidade Federal de Mato Grosso.