A ciência e a quarentena
Quando jogamos uma moeda para cima, as chances de sair cara ou coroa são as mesmas. Quando jogamos cem moedas para cima, as chances de saírem cinquenta caras e cinquenta coroas são maiores do que qualquer outro resultado. Ainda assim, são bem menores do que, em um lançamento, sair cara ou coroa.
Em um exercício de abstração, podemos pensar que o universo é formado por incontáveis caixas de coisas com resultados dependentes do lançamento de moedas. Teorias vão sempre apostar que o número de caras e coroas serão iguais. Como são milhares de moedas sendo jogadas, raramente vão acertar o resultado final, mas estarão constantemente próximas da resposta adequada. Por outro lado, palpiteiros podem acertar, em cem lançamentos, que sairiam sessenta caras. Um acerto desse tipo não passa de um chute, e a ciência vai continuar tendo mais chances de acertar a próxima rodada de lançamentos, mas céticos costumam duvidar desse fato.
Nesse caminho, ciências exatas e biológicas são capazes de separar as caixas de moedas jogadas. Assim, a biologia consegue pegar a caixinha “pandemias” e entender que, entre caras e coroas, uma doença nova irá causar estragos na espécie humana nos próximos duzentos anos (como fez várias vezes no passado). No entanto, são poucas moedas de diferença para saber se seria hoje ou em 15 anos, não gerando muitas possibilidades de precaução. Como ela veio agora, e as moedas da caixa do vírus ainda são desconhecidas, cientistas do setor tentam acelerar o processo de cara ou coroa onde o vírus não faz estrago e pode ser separado em sua caixa de moedas (laboratórios) para que ele se aproxime da média, enquanto buscam evitar que moedas sejam jogadas em seres humanos.
Em função do rápido avanço do coronavírus, não há tempo para conhecer todos os seus detalhes e montar um remédio sob medida no curto prazo. Por isso, são aplicados testes de substâncias já existentes que, por conta do que já conhecemos do vírus, poderiam ter alguma eficácia. Infelizmente, até agora, o único remédio que possui algum efeito comprovado contra a Covid-19, em qualquer etapa da doença, é o Remidisivir, que diminui, em média, o tempo necessário de internação.
A distribuição em massa de uma substância para o combate ao vírus só deve ocorrer após ter sua eficiência validada. Caso contrário, pode haver falta do remédio para controlar outras doenças, para as quais sua utilidade é comprovada. Além disso, o uso de medicamentos não devidamente testados permite análises e ações anti-ciência. Por exemplo, se um remédio sem validação científica pode ser utilizado como tratamento, eu também posso dizer que sonhei que uvas tratavam a Covid-19, e que todos os pacientes deveriam comer 13 uvas de manhã. Não haveria como me contestar.
As ciências sociais não conseguem separar as caixas de moedas que são jogadas. Por isso, muitas vezes se confunde qual caixa foi e/ou está sendo jogada. Por exemplo, existe enorme divergência para entender se a caixa do bem estar está mais conectada com o desenvolvimento econômico ou com a desigualdade social. Dessa forma, é necessário combinar as tentativas de separar as caixinhas de moeda com uma dose de palpites técnicos quando muitas caixas estão misturadas e são desconhecidas.
Com o passar dos anos e o desenvolvimento tecnológico, as moedas passaram a ser jogadas mais rapidamente. Hoje em dia, vivemos uma quantidade de coisas ao mesmo tempo muito maior do que no passado, e o grande desafio da ciência é conseguir combinar caixas diferentes.
Desde 2008, o mundo está em um momento econômico desfavorável. Apesar de diversos defensores do livre mercado, a necessidade de atuação do estado para tentar salvar as principais economias do planeta foi inquestionável. Por outro lado, governantes que insistem em métodos intervencionistas continuam acumulando fracassos.
Em conjunto com a crise econômica global, diversos outros problemas surgiram. O maior exemplo são as mudanças climáticas, com previsões científicas catastróficas. Entre os efeitos previstos, estão o derretimento de calotas polares, que levará a: inundação de cidades litorâneas e uma crise gigante de imigração; intensificação de desastres climáticos (como furacões, secas e chuvas irregulares); e extinção de diversas espécies. Em conjunto, todo esse abuso da natureza não deu tantos frutos ao ser humano quanto pensado, pois ainda temos cerca de 3,4 bilhões de pessoas no mundo (quase a metade da população) vivendo abaixo da linha da pobreza.
O mundo não vive só uma crise sanitária e econômica — vive também uma crise de ideias e informação. No passado, havia duas grandes correntes que sabiam muito bem o que queriam. Atualmente, precisamos de soluções para o aquecimento global, para a miséria e para as desigualdades sociais e de oportunidades do mundo de hoje, mas não temos uma teoria que abarque tudo isso. As teorias mais difundidas não têm dado conta do recado, e uma das principais utopias da população no momento é voltar para um passado que nunca existiu. Por isso, estão surgindo mais questionamentos à ciência do que no passado recente.
As vezes sabemos (pelo menos em parte) o que deve ser feito. A ciência consegue nos mostrar diversos caminhos. No entanto, é difícil convencer os outros (especialmente poderosos e/ou desinformados). Em um momento de pandemia, sabemos que o estado tem que ajudar ao máximo quem precisa. Com relação ao aquecimento global, sabemos que precisamos de acordos do mundo inteiro para enfrentar esse problema. Mas tem gente que ainda não entendeu. Por isso, falar o simples é tão importante.
Na prática, convencer as pessoas do que deve ser feito é um dos maiores desafios para uma sociedade mais sustentável em termos econômicos, sociais e ambientais. Apesar dos avisos científicos, muita gente ainda acredita que as moedas vão cair de maneira mais favorável que o previsto. Assim, a dificuldade para aceitar restrições em seus modos de vida em prol de um mundo melhor no futuro ainda é muito grande. Com as restrições emergenciais para desacelerar o triste avanço da Covid-19, a esperança é que a sociedade se toque de outros problemas que estão por vir. Devemos aceitar mais limitações individuais para beneficiar o meio ambiente e reduzir o número de pessoas em situação miserável. Vamos ver.