Guilherme Szczerbacki Besserman Vianna
Pautavel
Published in
7 min readMay 31, 2020

--

A Matemática da Pandemia

Esse texto é diferente do que estou acostumado a fazer. Normalmente, me arrisco em temas que não sou especialista, mas uso apenas palavras. No assunto de hoje, sou menos especialista ainda, mas quero usar estatísticas para analisar a realidade. Isso é um grande risco, pois, ao menos em minha humilde opinião, é mais fácil manipular números do que argumentos. Mas estava analisando dados sobre o corona (juro que não estou entediado, gosto de fazer isso) e quis compartilhar com vocês.

Em qualquer pandemia, o avanço inicial de um vírus segue, em uma visão simplificada, uma progressão geométrica (escala exponencial). Isso significa que o número de infectados no período t+1 é o equivalente ao número de infectados do período t multiplicado por uma constante. Por exemplo, se a constante for 2 e no início (período t) temos um infectado, em t+1 teremos 1x2 = 2 infectados. No período t+2, teremos 1x2x2 = 4 infectados, e assim por diante. No período 10 (t+9), teremos 1x2x2x2x2x2x2x2x2x2 = 1x2⁹= 512 infectados.

As progressões geométricas são conhecidas por sua rápida evolução ao longo dos períodos. Para percebermos essa velocidade, imaginemos se o vírus se expandisse em uma escala linear (progressão aritmética), no mesmo período t+9 . Utilizando a mesma constante (2), teríamos apenas 1+2+2+2+2+2+2+2+2+2 = 19 casos.

Estima-se que, sem quarentenas, a constante (chamada de RT em pandemias) do sars-cov-2 é cerca de 2,5 para cada duas semanas. Ou seja, a cada período teríamos 2,5 vezes o número de novos casos em relação ao período anterior (duas semanas). Isso pode ser verificado no gráfico de países que não adotaram ou demoraram para adotar as quarentenas, como EUA, Itália, Espanha e Suécia. Para os gráficos em escala logarítmica (como expostos), uma progressão geométrica perfeita seria uma reta, o que nos facilita a interpretação.

Total de novos casos de Coronavírus por dia em países selecionados (escala logarítmica)

Os gráficos estão feios em função da variedade de casos por dia. Para os mais curiosos em estatística, existem formas de deixar o gráfico bonito, como usar o número de casos por semana. Mas ia me dar trabalho montar, e acho a análise por dia interessante. É claro que estatísticas mais detalhadas, como as que os cientistas estão usando, são muito mais ricas de detalhes. Mas essa simplificação já ajuda a entender os números que serão expostos.

Sabemos que o vírus se espalhou mais rápido na Itália e na Espanha, mas os gráficos em escala individual mostram como a redução também foi muito maior, quando olhamos um gráfico da forma tradicional. Os números mostram o total de casos para cada 100.000 habitantes, de modo a retirar a diferença populacional dos países da conta.

Total de novos casos de coronavírus por dia para países selecionados (por 100.000 habitantes)

Como se pode perceber, a curva perdeu velocidade após a aplicação de lockdown (em meados de março) para Espanha e Itália. Para Estados Unidos e Suécia, continuam subindo (ou com um número de novos casos se estabilizando), e estão chegando próximos aos países latinos mencionados. Ou seja, Itália e Espanha tiveram um pico terrível, com muitas mortes, mas estão mais perto de erradicar o número de casos em seus territórios.

A Suécia é um caso emblemático. O país optou por não adotar quarentenas apostando em seu sistema de saúde fantástico. Conforme previsto, apresentou (e ainda apresenta) mais mortes que seus vizinhos. Em contrapartida, não teve nenhum benefício econômico, visto que teve uma queda no PIB equivalente aos outros países nórdicos (previsão de -6,8% em 2020, contra média de -6,3% dos vizinhos). Essa semana, Noruega e Dinamarca já vão abrir suas fronteiras, praticamente sem casos novos. Menos para a Suécia, por motivos óbvios. Ou seja, vão se recuperar economicamente mais rápido, além de terem evitado milhares de mortes em seus territórios.

Na América Latina, o vírus chegou depois. Tivemos tempo de ver seu efeito devastador, e somos países menos desenvolvidos (com menos leitos por pessoa). Por isso, conseguimos diminuir o ritmo das atividades cotidianas mais cedo (o que era uma obrigação), e nenhum país teve um crescimento exponencial como nos exemplos anteriores. Isso fica claro no gráfico a seguir, sem curvas em linha reta.

Total de novos casos de Covid-19 por dia em países selecionados da América Latina (gráfico em escala logarítimica)

No entanto, o grau de isolamento de cada país foi diferente. Por isso, o total de casos por 100.000 habitantes é bastante variável, mas conseguimos ver claras diferenças nas políticas aplicadas.

Total de novos casos de coronavírus por dia para países selecionados da América Latina (por 100.000 habitantes)

Paraguai, Uruguai, Argentina e México fizeram o dever de casa, com quarentenas restritivas. Chile e Peru estão, na medida per capita, com muitos problemas. O Chile foi conivente no início da pandemia e acaba de declarar lockdown em Santiago. O Brasil está no meio do caminho, pois é um país continental e a distribuição do vírus ocorre de maneira diferente nos estados. A falta de uma política nacional para conseguir resultados uniformes nos levou a esse resultado.

Estados como São Paulo, Rio de Janeiro, Amazonas e Ceará estão em situação mais grave, enquanto outros (por sorte ou política dos governadores), conseguiram se manter com poucos casos. Vou mostrar apenas o exemplo do Rio de Janeiro, pois é o gráfico que acompanho e tinha à mão. O primeiro gráfico mostra a evolução em escala logarítmica e o segundo o número de casos para cada 100.000 habitantes.

Casos de coronavírus por dia no município do Rio de Janeiro (gráfico em escala logaritimica)
Total de novos casos de coronavírus por dia para o município do Rio de Janeiro (por 100.000 habitantes)

Na escala logarítmica, a evolução da curva é mais suave que as da maioria dos países em pior situação. No entanto, os valores por 100.000 habitantes são muito mais elevados (já estão em mais de 20 nas últimas semanas, valor equivalente ao auge na Espanha). Isso é esperado, pois a concentração demográfica na cidade é maior do que em qualquer país, o que mostra que a medida por habitantes tem suas falhas (embora possa ser aplicada nos exemplos simples que estamos tratando).

No geral, o mais alarmante é a largura da curva. Essa semana, provavelmente, será a primeira com menos casos em relação a anterior desde o início da crise. Mas é uma diferença pequena, e isso significa muito pouco. A constante da evolução do vírus na cidade deve estar em algo bastante próximo de 1. Ou seja, seriam necessários muitos meses de continuidade do confinamento para realmente erradicar o vírus. E qualquer diminuição no grau de isolamento pode gerar novas ondas. É uma situação bastante diferente da Europa, onde, após desastres causados pela pandemia, lockdowns foram realizados e rapidamente a constante está se reduzindo para valores bastante próximos de zero.

Outro fator que deve ser considerado nessa análise são os dados subestimados. Em função da falta de testes (e talvez por interesse de políticos), estima-se que o Brasil tenha cerca de 15x mais casos do que o notificado. Com esse número, seríamos o país com mais casos per capita no mundo. Mas o número de casos subestimados não é um problema só no Brasil. Na Europa (onde há um bom número de casos diagnosticados) se estima 50% de subnotificação. Por essa métrica, o Brasil teria menos casos que San Marino, o Vaticano e o Catar (que eu sei que fica na Ásia).

O número de casos subestimado no Brasil mostra como é fácil manipular dados. Para as estatísticas, bastaria eu escolher os países certos para observar o que eu quisesse. Outro exemplo é o gráfico a seguir, comparando os casos de covid per capita com o PIB per capita dos países, sugerindo que quanto maior o PIB, mais devastador é o vírus.

Comparação entre casos de covid por habitante e pib per capita em países do mundo inteiro

O gráfico não quer dizer absolutamente nada, nem preciso explicar os motivos. Também pensei em buscar, dentro dos 210 países da base de dados que baixei, quem está pior que o Brasil, só para ver como seria fácil manobrar os números. Outra questão é que os números apontados hoje amanhã não valem mais nada. Em suma, prefiro bons argumentos do que números sem nexo, mas o corona me dá vontade de fazer gráficos.

Para ser um texto mais próximo de um nível científico, também seria necessário abordar outras variáveis, como o total de óbitos. Outra questão relevante seria a tal “imunidade de rebanho”. Mas, por estimativas, o Brasil tem 0,1% da população contaminada (1,5% considerando os dados subestimados). O Rio de Janeiro teria 0,4% da população contaminada (6% considerando os dados subestimados). Segundo cientistas, o grau necessário de contaminação para alcançar a imunidade de rebanho é 60%. Portanto, ainda estamos longe disso.

A mensagem final desse texto chato e cheio de números é que se o Brasil flexibilizar as quarentenas nos próximos dias teremos um desastre. A evolução no número de casos ainda é elevada e quem está em casa não é resistente ao vírus.

Deveríamos mirar em países vizinhos que atacaram o problema do vírus desde o início, como Argentina, Uruguai e Paraguai. Não há motivos para olhar exemplos ruins e tentar dizer que tem alguém pior. No Peru, há uma situação mais crítica, vamos torcer para que melhorem. Mas, pelo menos, presidente e ministros estão reduzindo seus salários entre 10% e 15%. Alguma chance da moda pegar?

* Os dados utilizados nos gráficos vieram todos do https://ourworldindata.org/coronavirus-source-data

--

--

Guilherme Szczerbacki Besserman Vianna
Pautavel

Textos curtos para (tentar) elevar o nível da discussão em uma conversa de bar.