O Erradinho

Guilherme Szczerbacki Besserman Vianna
Pautavel
Published in
5 min readAug 16, 2020

O noticiário está chato. A pandemia já dura tanto tempo que mil mortos em um dia (ou 100 mil mortos no total) não é mais razão para surpresa, escândalo ou choque. Não se trata necessariamente de falta de empatia, mas de apatia diante de expectativas se confirmando, visto que não sabemos para onde vamos.

Apesar das diversas tentativas de observar e explicar a realidade, a ciência ainda possui muito mais perguntas do que respostas sobre o vírus. Por exemplo, não se sabe o verdadeiro motivo da queda temporária da contaminação em cidades como Rio de Janeiro e São Paulo. O grau de isolamento é baixo e não há imunidade de rebanho. Diversas hipóteses são analisadas, como bolhas de contágio e imunidade cruzada, talvez a explicação seja uma combinação entre elas, além de outros fatores. De qualquer forma, já não temos como nos comparar com outros países que tiveram o auge da pandemia em períodos anteriores, pois nossa situação atual é totalmente diversa.

Se a ciência lida com as coisas como são, a moral tenta justificar o que elas deveriam ser. Cada indivíduo possui seus próprios valores (embora sempre influenciados pela comunidade em que vivem), o que torna essa análise subjetiva. Dois principais grupos de pessoas opinam atualmente: um primeiro, no qual me incluo, tem medo da situação piorar a cada vez que mais regras são flexibilizadas, e considera que o padrão atual ainda não é aceitável; e um segundo, que acredita que o pior já passou e que podemos voltar a viver normalmente.

Para facilitar a análise desses dois grupos, é interessante observar como o cérebro humano funciona. De forma resumida, tomamos decisões de duas formas: intuitivas (rápidas) ou racionais (lentas). Embora as duas se comuniquem em nossa forma de aprendizagem (muitas vezes, ao longo do tempo, o racional ajuda a melhorar nossa intuição e vice-versa), existem diversas situações comprovadas em que nossa intuição objetivamente erra ou que nosso racional nos faz deixar de olhar e compreender o todo. Para entrar nesse mundo, sugiro a leitura de “Rápido e Devagar”, de Daniel Kahneman.

Existem pessoas mais racionais e outras mais intuitivas. Inclusive, essa relação não é necessariamente um trade-off perfeito: embora não usemos as duas formas de pensar ao mesmo tempo, alguns indivíduos podem ser muito intuitivos e muito racionais; enquanto outros podem ser pouco racionais e pouco intuitivos. Se o leitor pensou que o último grupo é formado por pessoas menos inteligentes, foi uma reação intuitiva e eu não tive nada a ver com isso. Mas, com esse papo, aonde queremos chegar? Qual a relação do funcionamento do cérebro humano com as diferentes reações à pandemia?

De alguma forma, “determinamos” o grau de intuição que utilizamos ao eleger nosso modelo de pensar, em cada momento. Escolhemos, de maneira parcialmente racional e parcialmente intuitiva, o que achamos que funciona melhor, de acordo com cada situação e com as particularidades da vida de cada indivíduo. Quem usa em demasia a forma mais lenta de pensar pode sofrer com erros por descartar a intuição e deixar de viver coisas boas. O próprio aumento do uso de nosso lado racional consome mais energia e nos deixa mais cansados. Além disso, pode ser um caminho para problemas como excesso de medo ou dificuldades para enxergar questões evidentes do mundo ao redor. Por isso, quem age dessa forma muitas vezes recebe o apelido de “certinho” — pode ser uma zoação do bem para ajudá-lo a usar mais a intuição, mas também pode se transformar em um bullying traumático.

O certinho acredita que vai se contaminar com o vírus por qualquer respingo. Por isso, limpa todos os artigos do supermercado pedido online, e, quando é obrigado a sair de casa, usa protetor facial (shield), além da máscara. Ao chegar, vai direto pro banho e põe toda sua roupa para lavar. Como a ciência ainda não mapeou em todos os detalhes as formas de transmissão do vírus, é possível que sejam cuidados excessivos. Mas isso tem como fazer mal a alguém? Em muitos momentos, preocupações em demasia podem ser prejudiciais, mas em uma pandemia que para o mundo há cinco meses, não vejo como isso seria possível.

Por outro lado, sempre existiu gente que usa a intuição para tudo. Mesmo com a capacidade para tomar ações racionais, preferem fazer direto o que lhes vem à cabeça, com algo que eu chamo de preguiça de pensar (quem nunca?). As vezes dá certo, outras vezes não (como tudo na vida). O problema é a velha insistência no erro, que ocorre vez por outra. Viver desse modo não é eticamente condenável a priori, mas pode levar algumas pessoas a se prejudicarem (e prejudicarem outros) em determinadas situações. Por isso, proponho chama-los de “erradinhos”. Não há juízo de valor nesse vocativo, trata-se apenas de um contraponto aos certinhos.

Alguns erradinhos usam o clássico “sempre fiz assim, não é agora que vou mudar” na forma de lidar com a pandemia. Ou então, pensam que nada vai acontecer com eles. Assim, resolvem sair na rua, não usar máscara e inventar desculpas para dizer que o vírus “não é tão ruim assim”, ou que a coisa já tá passando. Nesses casos, a postura passa a ser terrivelmente egoísta, visto que toda a sociedade está em risco. Não é preciso muito pensamento lento para entender que é possível sair na rua sem que nada aconteça. Mas, quanto mais gente na rua, pior para a sociedade, que vai sofrer mais com a pandemia. Por isso, a atitude socialmente moral é sair apenas quando necessário e com as devidas precauções (mesmo que unicamente por preocupação com o outro).

Embora entre racional e intuitivo não exista certo e errado, a brincadeira faz parte dos relacionamentos humanos. Por que só zoamos os certinhos? Os erradinhos também devem ser cutucados de maneira saudável, para que possam aprender a privilegiar seu lado racional e terem um pouco mais de medo e solidariedade, em uma época como a que estamos vivendo. Um em cada 2.000 brasileiros já morreu por conta do coronavírus. A gente tem dificuldade em acreditar que vai acontecer conosco, mas sair na rua sem máscara ou participar de aglomerações pode ser o gatilho necessário para contaminar e/ou ser contaminado, contribuindo para a tragédia que ainda estamos vivendo.

--

--

Guilherme Szczerbacki Besserman Vianna
Pautavel

Textos curtos para (tentar) elevar o nível da discussão em uma conversa de bar.