Pandemia e História

Guilherme Szczerbacki Besserman Vianna
Pautavel
Published in
5 min readMay 10, 2020
by Design é Balela!

A convivência entre seres humanos e vírus é algo que a natureza já assiste há milênios. Ao longo da história, diversas pandemias já surgiram e mataram muita gente. Exemplos são a peste negra, a cólera e a gripe espanhola. Também podemos pensar nas doenças carregadas pelos europeus, que contaminaram populações do mundo inteiro na época das grandes navegações.

Em cada momento, pandemias afetam a população de maneiras diferentes. No passado, as pandemias não tinham vetores para se expandir como no momento atual. Por isso, foram limitadas a determinadas regiões. Entretanto, devido ao menor conhecimento existente e à menor capacidade para praticar quarentenas, seu resultado foi devastador onde surgiu.

Na atualidade, é inquestionável a maior capacidade científica para combater um vírus. Por outro lado, as grandes cidades nunca foram tão grandes e a população mundial nunca foi tão numerosa, além do mundo nunca ter sido tão globalizado. Estima-se que a população global de hoje seja cerca de cinco vezes maior que no início do Século XX. As altas densidades, combinadas com o fluxo de pessoas viajando o mundo inteiro, são tudo que os vírus precisam para se espalhar.

Para a ciência funcionar, são necessários experimentos. Em função da velocidade com que a Covid-19 se espalhou no mundo, em conjunto com as peculiaridades do vírus, ainda não houve tempo hábil para a testagem necessária para aprovação de medicamentos ou vacinas. Por outro lado, sabemos como lidar com esse tipo de doença em geral. Por isso, ações preventivas, como higienizar as mãos corretamente; e ações de combate ao vírus, como conseguir hospitais bem equipados (com respiradores, por exemplo) são de utilidade inquestionável. Mas, com o conhecimento histórico que já temos sobre pandemias, sabemos o mais importante para contê-la nesse momento é o isolamento. Basta comparar a evolução do número de casos entre os locais que fizeram e que não fizeram quarentenas. Assim, o conhecimento e a prática das ações recomendadas são essenciais para salvar vidas nesse período em que estamos em casa entediados.

Ao contrário das ciências exatas e biológicas, onde é possível testar os objetos de estudo em condições isoladas para definir comportamentos, as ciências sociais não têm essa opção. Por isso, um de seus maiores instrumentos de pesquisa é a história. Para fazer um chute técnico do que irá ocorrer no período pós-pandemia, podemos fazer uma digressão relativa à situação geopolítica mundial do último século.

No meio do século XX, percebeu-se que o caminho até então pragmático de “achar meu povo melhor que o seu” gerou incontáveis guerras ao longo da história, culminando na tragédia da Segunda Guerra Mundial. Depois disso, para uma melhor convivência, se difundiu o pensamento de que vidas humanas, independente de questões étnicas ou culturais, têm o mesmo valor. Ainda que seja possível apontar diversas falhas na aplicação desse pensamento, sobretudo em situações particulares como a atual, ele foi responsável pelo maior período de paz e de desenvolvimento tecnológico e de bem-estar que a humanidade já viu.

Nesses tempos de ganhos para a população mundial com o fim das grandes guerras, o mundo se dividiu em dois, graças à Guerra Fria. Comunistas e capitalistas travaram diversas batalhas ideológicas e práticas para ver qual sistema seria melhor, seja em termos éticos ou na capacidade de gerar desenvolvimento econômico. Em comum, cada sistema tinha sua utopia, e traçou um caminho que deveria ser percorrido para chegar a um sistema socioeconômico ideal.

Qualquer utopia tem uma parte boa e uma parte ruim. A parte boa é que elas tornam possível traçar um mundo ideal, permitindo a criação de cenários para chegar a ele. A parte ruim é que não conseguem captar todos os elementos da realidade, pois, dentre outros motivos, ela é dinâmica. Por exemplo, nenhuma utopia surgida antes do Século XXI é capaz de lidar com os problemas das mudanças climáticas — assim, seguir suas cartilhas não é suficiente para nos levar a um futuro próspero. Por isso, ideologias e utopias são importantes, mas elas precisam, de maneira contraditória, mudar com frequência, de acordo com o que realidade impõe.

Na Guerra Fria, o duelo na dimensão econômica, entre o livre mercado e o governo central, teve um vencedor. Com a queda do Muro de Berlim, pareceu nítido que o sistema endossado pelos norte-americanos era mais eficiente no tocante à economia. Por outro lado, o extenso debate ético continua. Como se trata de uma questão subjetiva, é improvável que alguma teoria se prove moralmente superior em algum momento, e isso é muito bom. As discussões entre os diferentes grupos são parte essencial para um sistema socioeconômico evoluir.

Com o mundo mais capitalista, diversos países se tornaram economicamente mais liberais, incluindo aqueles que, ideologicamente, pareciam ficar no meio das posições políticas da Guerra Fria. O caminho para a utopia do livre mercado parecia próximo. No entanto, sem uma oposição global tão forte, e com novos desafios da realidade, diversos defeitos apontados pela teoria começaram a ocorrer na prática.

Atualmente, temos mais pessoas em condições adequadas de bem estar do que em qualquer outro momento da história moderna. Essa conquista também é fruto da convivência de opiniões divergentes que contribuíram para o avanço da ciência. Porém, com a multiplicação da população global, não temos menos pessoas em condições de miséria (o que é inaceitável com a produtividade e os avanços tecnológicos do mundo atual). Além disso, as desigualdades explodiram e estamos usando muito mais do meio ambiente do que ele é capaz de nos oferecer.

Essa reflexão é importante para mostrar que, quando o mundo muda, nosso pensamento sobre o mundo tem que mudar também. O mundo é dinâmico, mas a teimosia do ser humano não. Por isso, muitos ainda acreditam em utopias impossíveis e/ou se negam a acreditar na verdade.

No momento, estamos vivendo uma tragédia humanitária. Tragédias não podem ser tratadas como oportunidades e, no futuro, ninguém sabe o que vai acontecer. Mas o mundo está mudando. O momento é de extrema incerteza, porém precisamos de racionalidade para agir o mais rápido possível de forma a buscar um novo tipo de equilíbrio. Após o vírus, necessitaremos enfrentar outros problemas urgentes, como as mudanças climáticas, a desigualdade social e a miséria no Século XXI.

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Guilherme Szczerbacki Besserman Vianna
Pautavel

Textos curtos para (tentar) elevar o nível da discussão em uma conversa de bar.