Senhores de Engenho eram Fascistas?

Guilherme Szczerbacki Besserman Vianna
Pautavel
Published in
5 min readJun 7, 2020
by Design é Balela!

Para essa semana, o texto não tinha como fugir da questão do momento: a onda de protestos após a morte cruel de George Floyd, inexplicavelmente enforcado por policiais por, supostamente, utilizar uma moeda falsa de 20 dólares para fazer um pagamento. O fato parece ter ocorrido simplesmente porque a vítima era negra.

No entanto, sobre o momento atual, não tenho muito o que acrescentar. Não estou acompanhando os noticiários como deveria e não tenho experiência que possa agregar conteúdo a tantas reflexões boas que têm ocorrido. Assim, para continuar um texto em que não tenho o que dizer, quebrei uma regra bastante importante para quem escreve: comecei pelo título. Conforme aprendi na escola, o nome de uma redação é a última coisa a ser feita, pois deve representar o que foi escrito, e as palavras nunca traduzem exatamente nossas ideias. No entanto, pensei em um título inspirado em dois livros que passaram pela minha quarentena: “Androides Sonham com Ovelhas Elétricas?” e “Um Defeito de Cor”.

O livro dos androides é um clássico de ficção científica (no qual foi baseado o filme Blade Runner), onde, em um futuro para a época (2019), após serem escravizados, androides se revoltam e passam a ser caçados por seres humanos. Além disso, a maioria dos animais estão mortos, mas existem versões elétricas idênticas e mais baratas para qualquer animal doméstico. Tudo isso acontece nas primeiras páginas do livro, não tem spoiler. O título provocativo e o enredo estão conectados com a reflexão sobre o que seria humano e/ou sagrado e por que um animal de verdade valeria mais que um elétrico basicamente idêntico.

Já “Um Defeito de Cor” é um livro enorme (ainda estou longe da metade) que conta a história de vida de uma negra que vem criança da África para ser escravizada no Brasil. A narrativa conta diversas crueldades de forma tão simples, que é impossível não se emocionar. Ao longo das páginas e da aula de história que é o livro, o leitor reflete sobre como era fácil normalizar a escravidão e como existem particularidades que eu nunca havia pensado na terrível vida de um escravo.

Em comum, ambas as estórias têm a escravidão no centro do enredo. Para escravizar alguém, é necessário acreditar que uma determinada vida vale mais que outra, o que vai de encontro com os princípios do humanismo — filosofia moral (ou religião) que define que a vida de cada ser humano tem o mesmo valor e é sagrada. Embora não haja evidência científica de que isso é verdade, é algo essencial para a construção de uma sociedade com pluralidade de ideias. Quando o humanismo não é respeitado, abre-se portas para crueldades como o que ocorreu com George Floyd, visto que quem as cometeu não acredita que a vida daquele ser humano era sagrada.

Em um passado distante, a definição de quais vidas humanas seriam sagradas era bastante confusa. Na cabeça dos europeus, por muito tempo, para uma vida ser sagrada, ela deveria ter alma. Para ter alma, era necessário ser cristão. Assim, o sofrimento de não cristãos era irrelevante, e isso era suficiente para que a escravização de outras pessoas fosse aceitável (mesmo depois de batizadas). Diversos outros povos, como gregos e egípcios, também escravizaram, sob o pretexto de que seria bom para a economia, e que determinados seres humanos poderiam sofrer, por não possuírem alma.

Em um passado menos distante, quando a escravidão foi proibida no ocidente, algumas pessoas ficaram confusas, pela perspectiva de não poderem mais se apropriar de outros seres humanos. Ou vocês acham que, de uma hora pra outra, um senhor de engenho passaria a acreditar que um negro teria alma?

Com a difusão do humanismo, e, principalmente, pela falta de retorno econômico, o modelo produtivo baseado na escravidão foi, ao menos em termos oficiais, extinto. Porém, os negros continuaram socialmente sendo tratados como menos importantes. Foram abandonados, após a alforria, sem acesso a trabalho remunerado, moradia, alimentação, educação ou saúde. Ou seja, receberam um upgrade fajuto: passou-se a aceitar que os ex-escravos tinham alma, mas eles não receberam seus direitos de cidadãos. A melhoria nas condições de vida deles não significou (nem de perto) respeito aos princípios do humanismo ou igualdade de oportunidades.

No presente, muita gente acredita que o conceito de que toda vida humana vale igual é difundido. No entanto, na prática, ainda vivemos algo bastante diferente. Um exemplo é o triste caso da patroa que acha que a vida do filho da funcionária vale menos.

Como somos produtos de um ambiente cultural, tratamos vidas, consciente ou inconscientemente, de maneira desigual. Para quem tem preguiça de pensar, estereótipos são reforçados. Podemos ouvir por aí frases como “negros têm maior probabilidade de cometer crimes”, mesmo sabendo que essa lógica é falsa. Além dos preguiçosos de pensamento serem racistas, desprezam toda a dívida histórica que a sociedade possui com os negros, sobretudo as desigualdades associadas.

E o título? Bem, o fascismo é um regime que surgiu apenas no Século XX, e uma de suas características é que os indivíduos deveriam se submeter à sua nação. Então, segundo essa definição, Senhores de Engenho não eram fascistas. Mas o desprezo a outros seres humanos era uma característica em comum. Da mesma forma, fascistas normalizavam o desperdício de vidas em prol do conceito abstrato de nação.

No futuro, não sei se existirão androides. Mas a reflexão do que tem alma, do que é sagrado e do que é humano continuará existindo. Os debates precisam do maior número de informação de verdade difundida para que crueldades possam ser evitadas e para que todos possam ter o direito de serem donos da própria vida.

Se (e como) o fascismo existe hoje, e se ele está ligado ao racismo estrutural de nossa sociedade, vou deixar para interpretação do leitor.

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Guilherme Szczerbacki Besserman Vianna
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Textos curtos para (tentar) elevar o nível da discussão em uma conversa de bar.