Um Covid à Reflexão

Guilherme Szczerbacki Besserman Vianna
Pautavel
Published in
6 min readMay 3, 2020

Eu não queria escrever sobre a Covid, pois só se fala disso. Mas não tem jeito, pois só se fala disso. Primeiramente, resolvi pensar em coisas boas que esse momento pode nos proporcionar. É legal ter mais tempo para si mesmo, bem como conseguir ter hábitos que antes tentávamos, mas até então eram impossíveis. Mas um texto sobre isso seria um saco. O que pode ser interessante é contar o que está acontecendo para pessoas que não viveram essa loucura. Então vamos lá.

Não sei como fazer uma transição sutil e menos literal para escrever tempos verbais no passado, como se estivesse contando uma história. Mas é o que vou fazer a partir de agora.

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A primeira coisa será dizer que a pandemia do Covid-19 mudou padrões de vida há muito estabelecidos no mundo inteiro. A necessidade de ficar em casa sempre foi prejudicial ao ser humano, seja pensando em trabalho ou em lazer, mas não tinha jeito. Sim, o mundo tinha bastante tecnologia e não, não existia remédio nem vacina para algo que depois ficou tão inofensivo. Como nos adaptamos mais rápido às coisas boas do que às coisas ruins, muitas pessoas se perguntaram se a quarentena era mesmo necessária.

Quanto maior a infraestrutura de uma região, mais ela consegue tolerar a sobrecarga hospitalar. Mas nenhum lugar tinha leitos nem profissionais suficientes para o avanço desenfreado da pandemia, pois isso não faria sentido técnico nem econômico antes do vírus aparecer. Como a velocidade de transmissão do vírus pela população era muito elevada, sem a realização de quarentenas, o sistema de saúde sofreria um colapso e, consequentemente, muitas mortes evitáveis ocorreriam. Assim, com objetivo de achatar a curva de contaminação, a única solução possível para a redução do número de óbitos no período era a determinar que as pessoas ficassem confinadas em suas casas por um determinado tempo.

Com a indicação da quarentena como solução, passou-se a discutir se o confinamento valia a pena em termos morais e para a economia. Moralmente, para humanistas, o mais importante é preservar vidas. Nessa lógica, mesmo se a quarentena gerasse resultados econômicos piores do que seguir com a vida normal (o que vou discutir mais a frente), o ponto de inflexão (onde passaria a valer mais a pena investir na economia ao invés da saúde) seria o limite hospitalar de cada região. Sem o colapso dos estabelecimentos de saúde, o tratamento médico seria adequado. Apesar do vírus continuar se expandindo, seria difícil salvar mais vidas. Com a superlotação do sistema, pessoas morreriam por falta de atendimento adequado. Como não existia local com capacidade hospitalar para atender a demanda estimada de pacientes com Covid sem a realização da quarentena, ela se tornou necessária. Afinal, ainda que fome e desemprego levem a óbitos, a quantidade de mortes evitáveis por Covid era muito maior do que quantidade de vidas que qualquer desenvolvimento econômico seria capaz de salvar no curto prazo.

Ainda em termos de desenvolvimento econômico, a não realização de confinamentos também traria resultados piores do que as quarentenas. Empresas inteiras teriam surtos epidêmicos, com uma quantidade incontável de funcionários que estariam impossibilitados de trabalhar; com um número excessivo de doentes, menos pessoas buscariam comprar produtos relacionados ao lazer; estabelecimentos teriam que fechar sem um planejamento adequado por falta de demanda; um número enorme de pessoas estaria de luto, legal ou psicológico, ficando sem condições de produzir. Em resumo, as incertezas sem a realização das quarentenas seriam maiores do que o que ocorreu.

Se não bastassem os problemas internos, ainda teriam os problemas do investimento estrangeiro. Alguns países, como a Nova Zelândia, se cuidaram melhor do que outros e saíram mais rápido da pandemia. Que investidor iria botar seu dinheiro em um país com um sistema de saúde em colapso, tendo opções de países saudáveis?

Ao longo da história, vivemos momentos de mais ou menos equilíbrio econômico. Embora o equilíbrio nunca seja total, em diversas circunstâncias temos controle de variáveis o suficiente para fazer previsões com um alto grau de chances de acertar. Em situações próximas do equilíbrio, por exemplo, o dono de um boteco (vamos chamá-lo de Seu Walter) tem uma boa noção de quantas pessoas vão frequentar seu estabelecimento por dia. Pode não saber se o André, a Maria ou o José vão aparecer na sexta-feira, mas acredita que vão ter cerca de 10 consumidores no bar. Se forem só cinco, na semana seguinte vão 15 e assim Seu Walter consegue acertar as contas. Durante a pandemia, Seu Walter não só estava com o bar fechado como não tinha a menor ideia de quantas pessoas iriam aparecer depois que ele reabrisse, mesmo com minha presença garantida quando pudesse sair de casa.

A história fictícia do Seu Walter é comum a basicamente qualquer negócio da época. Das menores espeluncas até as grandes companhias, ninguém sabia como a demanda se comportaria no futuro próximo. Por isso, além da recessão, as incertezas com o futuro não tão próximo da economia eram tão grandes. Embora fosse possível fazer previsões como o aumento dos pedidos de delivery e entregas em casa ou a maior automação de empresas com a retomada das atividades, ninguém sabia em que grau isso iria acontecer.

Apesar da incerteza ser global, grandes empresas tinham maior capacidade em termos de capital e mão de obra para lidar com os desequilíbrios do momento. Além de capital de giro, já estavam capacitando seus funcionários e/ou contratando especialistas para saírem da crise e entenderem o momento seguinte o mais rápido possível. Por isso, a tendência natural era, além da oferta de produtos diminuir, o mercado se concentrar ainda mais. Sem ações do governo para salvar pequenos negócios, setores diversificados tenderiam a se tornar oligopólios, o que seria prejudicial para o desenvolvimento econômico e para o consumidor.

Pelo lado dos empregados, a tendência natural também era o aumento das desigualdades e da pobreza. Profissionais informais são mais fáceis de demitir e possuem menos (ou nenhum) encargos trabalhistas para receber. Em geral, trabalhadores sem carteira assinada também são menos especializados, sendo mais substituíveis por máquinas ou trabalhadores que possam acumular funções. Ou seja, sem ações do governo nessa área, a tendência também seria haver desemprego em massa, o que era ruim para todo mundo.

Mesmo com problemas fiscais, não havia motivo para o governo se preocupar em gastar. Com uma recessão, o risco de ocorrer inflação ou aumento da taxa de juros era mínimo (mesmo com gastos elevados, a tendência era o oposto ocorrer). Assim, não havia como se deteriorar mais o cenário macroeconômico do que naquele momento. Quanto maior fosse a continuidade da pandemia, maior seria o aumento da dívida pública e a redução da atividade econômica (reduzindo as receitas de impostos), com menos gente trabalhando.

Por outro lado, contrair uma dívida significaria a necessidade de pagá-la no futuro. Mas tratava-se de uma escolha fácil: gastar o que fosse preciso para salvar empregos e pequenas empresas. No momento seguinte, em um cenário de mais equilíbrio, foi possível fazer o planejamento adequado para pagar os credores do estado. Caso os governos resolvessem não agir, deveria haver desemprego em massa e uma recessão contínua, nos levando a um caos social e a um aumento ainda maior da dívida pública, pois a arrecadação baixaria em um grau insustentável.

O tempo está passando, o grau de isolamento está abaixo do que deveria, a pandemia continua se expandindo e tem gente querendo botar o povo pra trabalhar, ignorando a realidade. Mas eu ainda espero poder contar uma história como essa, na qual mortes evitáveis não ocorreram.

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Guilherme Szczerbacki Besserman Vianna
Pautavel

Textos curtos para (tentar) elevar o nível da discussão em uma conversa de bar.