A cidade faz o vilão ou o vilão faz a cidade?

(Contém spoilers)

Pedro Vinícius
Pedro Vinícius
4 min readSep 7, 2018

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Foto: HBO

O que me prende mais a atenção na história de “Sharp Objects” é a capacidade de um lugar tão pequeno e aparentemente pacato, a cidade de Wind Gap, ser um ambiente tão aterrorizante e cruel.

Mas não deveria ser nenhuma surpresa já que esse tipo de lugar é o preferido dos melhores filmes de terror, porém, o que a série traz de diferente é a habilidade de praticamente todos os habitantes daquela cidadezinha possuírem os piores defeitos do ser humano (e ainda tem uma floresta macabra pra completar).

Camille Preaker (Amy Adams) é o principal exemplo das consequências de viver em Wind Gap. O alcoolismo, o uso e de drogas e automutilação da personagem tem dois agravantes principais: a mãe e o ambiente sádico em que ela estava inserida.

Adora (Patricia Clarkson) mantem um relacionamento abusivo com todas as suas filhas. Camille nunca foi a filha dos sonhos de Adora, a necessidade da mãe de prestar cuidados e dar atenção a qualquer custo encontrava sempre uma rejeição por parte da filha mais velha.

O que surtiu efeitos na relação das duas, por mais que tentasse Camille nunca se via boa o suficiente para mãe e a própria não era fã em proferir palavras e demonstrar atos de carinho e afeto para a filha.

Camille e Adora. Foto: HBO

Se na cidade grande ainda é possível manter o mínimo de privacidade no seu dia a dia e na relação com a sua família, em cidades pequenas é como se você tivesse uma espécie de guarda compartilhada com cada vizinho.

Quem nasce em Wind Gap já tem o seu destino fadado se não for forte o suficiente para não sucumbir nos rituais de vida preestabelecidos, que ainda são bem mais enraizados nas mulheres (crescer, se casar com algum namorado do colegial, ter filhos, viver para eles e não possuir algum tipo objetivo próprio).

Os pitacos, a fofoca e a inveja alimentam a cidade. O que seria da vida das pessoas em um lugar que nada acontece se não houvesse a ânsia de se comparar com os outros e comprovar que de um jeito ou de outro você está melhor do que aqueles ao seu redor.

Wind Gap. Foto: HBO

Quando acontece o assassinato de duas meninas da cidade, é imediato nas rodas de conversa as apostas de “quem matou” por isso e por tal motivo, era chegada a hora de despejar tudo de ruim que uma pessoa pensa sobre a outra e elencar os argumentos do porquê tal pessoa foi capaz de matar as meninas.

Nessa altura do campeonato, você já deve saber que a assassina é Amma (Eliza Scanlen), irmã mais nova de Camille, e que Adora possui a Síndrome de Munchausen por Procuração, que a faz deliberadamente provocar doenças em suas filhas para que assim ela possa cuidá-las e sentir que elas precisam da sua atenção e ajuda e ainda ser vista por outros com a salvadora, uma heroína.

E foi desse jeito que a mãe matou a outra irmã de Camille, Marian, quando as duas eram crianças e foi a responsável por desenvolver ainda mais a psicopatia de Amma, que necessitava da devoção de Adora e não gostou quando viu a mãe doando parte do seu tempo para prestar cuidados e atenção às suas outras amigas.

Amma, Camille e Adora. Foto: Uproxx

“Wind Gap protects its own”

Em tradução livre “Wind Gap protege os seus próprios”, é o que Camille escreve em uma das suas matérias sobre os assassinatos. Mas não é isso que se vê, já que é notório que grande parte das pessoas que viviam na cidade sabiam do que Adora praticava com as filhas, principalmente a amiga da família, Jackie (Elizabeth Perkins), que tinha conhecimento do que Adora tinha feito com Marian e estava fazendo com Amma. Nem o xerife da cidade escapa desse fato, todas as pistas que a série apresenta nos levam a acreditar nisso.

O próprio marido de Adora sabia o que a esposa estava fazendo com a filha deles, mas muita coisa não fez. A omissão, o apoio velado e muitas vezes o desprezo parecem ser traços da personalidade dos habitantes de Wind Gap.

Essa afirmativa cai por terra mais uma vez quando descobrimos que Camille foi abusada sexualmente pelos jogadores de futebol do seu colégio quando era adolescente.

Além, é claro, de todos os traumas que a morte da irmã e os maus tratos da mãe trouxeram pra sua vida que, mais tarde, se tornaram os motivos principais para que ela iniciasse a automutilação.

Mas o que esperar de uma cidade que reencena anualmente um ato de abuso sexual e celebram o seu fundador pedófilo (que por sinal era da bandeira confederada dos Estados Unidos)?

Camille Preaker era o perfil de garota interiorana que todas almejavam ser mas que, na realidade, é o resultado da criação conturbada e perversa de um local que ninguém deveria estar.

Wind Gap é o cenário perfeito para as piores atrocidades e o celeiro de possíveis novos assassinatos e serial killers.

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