A tristeza do vencedor

Leandro Godinho
Peço perdão
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5 min readApr 9, 2020
Romário, Dunga e Bebeto durante a Copa de 1994 — Lutz Bongarts/Bongarts/Getty Images

Você já guardou duas horinhas na vida para contemplar o jogão que travaram as seleções da França e do Brasil em 21 de junho de 1986, válido pelas quartas-de-final da Copa do Mundo, no Estádio Jalisco, em Guadalajara, no México? Caso não o tenha feito, vou dizer aqui: faça-se esse favor.

Assistir a essa partida durante um dia bastante ocioso no trabalho me ajudou a entender um pouco mais a admiração dos cronistas esportivos de idade avançada pelo Sócrates, me permitiu olhar para Branco e Josimar com outros olhos, me fez achar injusto que a geração de Platini tenha encontrado nas duas semis que alcançou uma Alemanha que foi a três finais de Copa em sequência.

Aquele Brasil que perdeu para a França em 86 é sempre visto a partir da eliminação brasileira na Copa anterior, diante da Itália. Se o Brasil de 82, mesmo tendo perdido o jogo que lhe valeria uma vaga na semi-final, é repetidas vezes apontado como a Seleção que deveria ter vencido aquela Copa, o mesmo não se aplica ao time de 86: durante aquele mês de junho um rapaz chamado Diego Armando Maradona jogou nos campos mexicanos um futebol raras vezes visto, e mais raras vezes ainda televisionado via satélite para todo lugar dotado de uma antena receptora, e quando esse mesmo rapaz levantou a Copa do Mundo após a sua Argentina bater os alemães na final, não havia um crítico para duvidar daquele mérito.

Ver aquela Seleção jogar o que jogou contra a França plantou em mim esse sonho perdido; e se o Brasil houvesse prevalecido? Bateria a Alemanha de Matthaus e Rummennige treinada por Beckenbauer? Teria chances diante daquela Argentina e daquele Maradona? E se Márcio Nunes houvesse se distraído diante de Zico e o Galinho chegasse ao México com o joelho funcional, em forma?

(Tudo poderia acontecer e mesmo assim Maradona iria encontrar Burruchaga em disparada rumo ao terceiro e decisivo gol aos 39 minutos do segundo tempo da Final no Azteca da forma como foi e muitos aprenderam a se apaixonar a cada videotape.)

Maradona, um outro Maradona, um Maradona pós-Maradona, chegou à Copa do Mundo de 1994 como só Maradona poderia fazê-lo. Em torno dele, a Argentina, que mal havia se classificado para o torneio, que havia tomado uma autêntica surra da Colômbia em Buenos Aires nas eliminatórias, se reagrupou.

Mas se em 86 a Copa foi toda de Maradona, em 94 ela seria inteira de outro homem — o nome dele é Romário de Souza Faria. Romário era o grande nome brasileiro desde as eliminatórias, estivesse ele em campo ou não. Sem ele, o time montado por Parreira e Zagallo quase penou uma repescagem para jogar a Copa; com ele, era muito estranho não vencer qualquer adversário.

Flagrado no anti-doping na segunda partida da Argentina dentro daquele mundial, a derrocada de Diego acabaria decretando a derrocada daquele time que em duas partidas havia resgatado uma camiseta bi-campeã do mundo. Sem seu 10, o selecionado albiceleste perderia mais dois jogos em meio a um pandemônio e diria adeus àquele verão norte-americano.

Romário estava ocupado demais em ser o melhor jogador de futebol do planeta para se abalar com rivais. Ele fez um gol de cabeça no meio de dois zagueiros suecos, ele deu o passe para seu amigo Bebeto fazer o gol da vitória contra os norte-americanos em casa em pleno 4 de julho, ele foi decisivo e fatal ao não correr na direção do gol numa partida de quartas-de-final.

O Brasil venceu a Copa naquele ano de 94, e essa vitória encerrou um jejum que já durava 24 anos desde a conquista no México, em 70. E é aí que começam os poréns.

Aquele time vencedor também era visto a partir do time de 82. As críticas ao modo como o Brasil jogava para vencer seus jogos em 94 não buscaram, por exemplo, o time de 70, que defenestrou os italianos na partida final onde cada gol brasileiro parecia destinado à eternidade (deveria haver uma lei que exigisse que os jogos e videotapes da Seleção de 70 só fossem transmitidos em telas de cinema, para que as pessoas jamais se esquecessem de que aquilo é arte); ela citava o escrete de 82, que perdeu a Copa para os mesmos italianos que Romário e cia. bateram, ainda que nos pênaltis após 120 minutos de um futebol lamentável, lento e sem gols.

Se Zico e Sócrates eram os líderes em campo daqueles times de 82 e 86, a liderança em 94 pertencia a Romário e ao capitão do time, o homem que levantou a taça cheio de raiva e vingança, Dunga. Em 1994, Dunga ostentar a faixa de capitão da Seleção era uma blasfêmia. Ele era a memória viva do mal futebol que o Brasil havia levado para a Copa de 90, um time do qual quase não se registram lembranças além da derrota para a Argentina nas oitavas, um jogo onde o Brasil atuou melhor e perdeu porque Maradona só precisou jogar por cerca de oito segundos, o tempo de deixar para trás nossos dois volantes e lançar Caniggia dentro da nossa zaga.

Em 1994, ganha a Copa, Dunga teve diante de si a chance de moldar a sua imagem a seu gosto de vencedor. Carlos Alberto, Beckenbauer e Bobby Moore eternizaram sua glória com um sorriso. Maradona beijou a Copa, assim como fez o próprio Romário. Dunga ao receber a taça, faz questão de lembrar de seus detratores. A impressão que ficou é de que ele começou a xingar aqueles que duvidavam dele ao levantar a taça e nunca mais parou.

A raiva de Dunga diante da própria vitória talvez ajude a moldar a imagem do time do qual ele era o capitão. É como se aquele time ter conquistado o título que não veio em 82 ou 86 fosse outra ofensa. A raiva de Dunga me faz sonhar até hoje se, por qualquer acaso, a mão de Havelange resolvesse deixar Maradona levar a cabo a sua fênix particular naquele ano da graça de 1994, até onde aquele time poderia chegar.

Algo me diz, contudo, que Maradona erraria o último pênalti e Dunga dedicaria sua alegria a pessoas que detesta, via satélite, diante de todos nós.

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