Racismo não é privilégio

Leandro Godinho
Peço perdão
Published in
3 min readNov 26, 2020
Foto de Luiza Castro, do Sul 21, durante protesto realizado em Porto Alegre em 20/11/2020

Tomo a liberdade de considerar que se você está lendo esse texto, é porque já sabe que, na noite de 19 de novembro passada, João Alberto Silveira Freitas foi espancado até a morte por duas pessoas que trabalhavam na segurança do supermercado Carrefour, em Porto Alegre. João Alberto, o Beto, era um negro.

Muito já foi dito sobre o ocorrido. Dentro desse muito, uma edição do podcast Bendita Sois Vós, publicado nesta quarta-feira, dia 25, que trouxe para a sua bancada outros dois jornalistas: Maikio Guimarães e Marcelo Nepomuceno. Aos 12 minutos e 20 segundos do programa, Geórgia Santos, a apresentadora do podcast, elabora uma pergunta que me fez sentar aqui para escrever essa espécie torta de resposta, ou tréplica — porque a pergunta, na verdade, foi respondida durante a gravação por Nepomuceno: aconteceria com uma pessoa branca o que aconteceu com o Beto?

Grande parte da tragédia do nosso racismo, para mim, passa pela dificuldade de responder a essa pergunta. Não porque o racismo seja algo difícil de ser visto no Brasil. Alguém que esteja lendo essa frase nunca ouviu ou contou uma piada de preto na infância? Alguém nunca ouviu a frase “preto correndo é ladrão”? “Nêga do cabelo duro” não é título de apenas um grande sucesso do cancioneiro musical brasileiro, mas de dois. (E não estou citando todo um universo de dados computados que nos dizem, há anos, que a pele negra torna a vida de qualquer pessoa, mas em especial de pobres e mulheres, muito mais difícil no Brasil — o que não é privilégio nosso, porque o mesmo fenômeno acontece no mundo todo.)

A tragédia, penso, é que mesmo dentro dessa realidade, uma realidade onde a gente sabe o nome das pessoas negras que, por exemplo, sentam na bancada de um telejornal (porque todas as outras são brancas), ou são nomeadas para o Supremo Tribunal Federal (porque todas as outras são brancas), ou chegam a qualquer lugar de destaque onde as pessoas são sempre, sempre, sempre brancas, o racismo não vira um assunto.

Porque para ser assunto, o racismo ainda precisa do aval das pessoas brancas, que não são as vítimas.

Acontece que não basta ser branco para não ser um fodido no Brasil. Existem pessoas brancas e pobres, e mais do que apenas pobres, mas fodidas — sem a perspectiva do acesso a uma vida melhor. Essas pessoas também são maltratadas pelo país, pela vida, também estão sujeitas ao que a vida reserva para quem não pode pagar plano de saúde, escola particular, condomínio: elas também não podem passear no shopping, entrar nos bancos, frequentar salas de embarque de aeroportos sem parecer corpos estranhos.

Talvez para essas pessoas, quando um negro acusa o racismo, ele está se valendo de algo que ela não tem — a pele negra — para fugir dessa miséria. O racismo, que é crime, pode ser confundido com uma espécie de privilégio dentro da nossa tragédia racial. Para essas pessoas, ser vista como alguém a ser esculachado porque parece pobre demais para ter direito a ter voz também deve ser uma realidade muito concreta. Quando uma pessoa negra aponta o racismo, essa pessoa percebe que perdeu mais uma vez: se acontecer comigo, o que vou dizer?

Mas é claro: quando acontece, a gente sabe, a vítima tem pele negra.

Não é à toa que moramos num país onde minorias lutam para que racismo, feminicídio e homofobia sejam judicializados. Isso não é privilégio. Ser negro, ser mulher e ser gay nesse país não é privilégio. Pessoas negras, mulheres e gays sofrem violências cotidianas porque apenas são. Estar bem vestido não garante a quem tem pele negra a segurança de dormir em casa.

Beto, lembremos, estava com a sua esposa na fila de um supermercado, pagando as compras. Algo se passou nessa cena que atraiu os seguranças para Beto e partir daí, Beto deixou de ser um homem para ser um negro que não aceitou o esculacho. E foi assim que mataram mais um preto no Brasil.

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