Um olhar sobre a Pec 241

Leandro Godinho
Peço perdão
Published in
3 min readNov 4, 2016

Tem um aspecto dessa nova onda de massacrar o serviço público, em especial a Saúde e a Educação, que passará batido, creio, em meio a todo o noticiário e desinformação.

Muitos dos trabalhadores dessas áreas não estão no serviço público por acaso, assim como temos os alunos de graduação e bolsistas de universidades públicas não apenas optaram pelo ensino público.

Existem o que ali estão porque sequer conseguem se imaginar trabalhando na gestão privada, pois nela não há espaço para o que elas entendem necessário, entender as pessoas que irão receber os serviços.

Dialogar com as pessoas através do serviço público deveria ser mais valorizado do que consultorias de gestão milionárias, a última moda do serviço público: pensa aí no Saúde na Família, por exemplo. A partir dele, das suas práticas e de seus resultados, profissionais de saúde — médicos, enfermeiros, assistentes sociais — lutam por uma formação mais humana nos cursos de medicina (menos focada em receituário e mais em diálogo e prevenção).

Pensa no impacto disso dentro da sociedade, agora. Pensa no que poderia significar cursos de medicina que não reproduzissem apenas a lógica de ter um anel de doutor junto do conhecimento acadêmico. Dentro da lógica que havia dentro das lutas políticas do serviço público, as pessoas que lutavam por serviços que dialogassem mais com a população do que com contratos perdiam espaços, perdiam chefias, perdiam oportunidades — lutar, afinal, envolve dizer não e crenças políticas não se compram.

A pessoa que quer desenvolver uma carreira dentro da academia passa por questões similares — e tão similares que não raro a opção pelo serviço público acaba sendo uma consequência da vida acadêmica. Ela quer desenvolver pesquisas dentro das universidades públicas porque (1) existe esse espaço fora das públicas no BR? e (2) ela não quer desenvolver um produto e ficar riquíssima com isso. Por exemplo, ela pode querer estudar um recorte bastante específico de violência contra a mulher e o fato dessa pesquisa acontecer dentro da universidade pública já é uma garantia de que a própria academia poderá aplicar seus dados na sociedade, sugerir políticas para o Estado. O conhecimento não estará sob royalties, acordos de confidencialidade, contratos kafkianos — estará ao alcance de uma visita a bibliotecas.

Essas pessoas estão vendo seus projetos de vida esmagados por um grupo político que finalmente obteve cacife para apear ao poder, se valendo basicamente de trapaças políticas. Porque, ao que tudo indica, os patrocinadores das tramoias e acordos que derrubaram o governo eleito em 2014 já escolheram seu butim: a Pec 241. Essa proposta de emenda constitucional, na prática, será uma espécie de pá de cal na terra já bastante devastada onde quem ainda persiste tenta plantar sementes de um país menos desigual. Ela vai ceifar bolsas, projetos, incentivos num país onde membros do poder judiciário podem ganhar mensalmente mais de R$ 30 mil reais (fora os auxílios).

São essas pessoas quem vão resistir na luta a favor de serviços públicos no Brasil, sabe? São essas pessoas quem vão ocupar escolas e universidades para chamar a atenção para o desmonte do sistema de ensino, mesmo diante de tropas de choque. São essas pessoas que vão desafiar a realidade onde o direito de greve deixou de existir conforme tal. Elas estão pouco se fodendo com 2018, Dilma, PT. A luta delas será por direitos e dignidade. Entre elas tem gente que entrou no serviço público ou na academia há 10 anos sabendo que teriam que lutar e resistir para tocar seus projetos, mas contavam com o mínimo de dignidade.

O projeto de vida delas envolve tentar fazer o Estado chegar a mais pessoas, envolve ampliar o alcance da nossa cidadania. Porque elas entendem que direitos não podem ser privilégios — e o que não é privilégio precisa estar disponível a todos.

Spoiler: se você só pode entrar numa faculdade pagando cursinho, o direito à educação foi pras cucuias (te roubaram, trouxa).

E é esse particular — ampliar o alcance da cidadania — que incomoda tanto Os Donos do Poder™ que até ontem podiam negociar seus escravos em praça pública que continuavam candidatos da batizar nomes de praça no futuro.

Porque, o horror, qualquer dia desses o Brasil poderia acordar numa democracia sem privilégios!

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