Memórias

A Gripe

Memórias do surto de Gripe A em 2009

pedro a duArte
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4 min readSep 16, 2022

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Estou na sala de espera do fisioterapeuta, espero meu pai sair da sessão dele. Problemas na lombar — provavelmente piorados pelo fato de todo dia ir e voltar de São Paulo (onde trabalha) para Campinas (onde vive).

Vejo na televisão o telejornal. Exibem imagens de pessoas andando na rua enquanto os apresentadores falam de um novo vírus encontrado no México, contaminando toda a população. Explicam que a doença levou o apelido de “Gripe Suína” enquanto exibem imagens de um abatedouro de porcos.

As aulas são suspensas até o surto passar. Estamos no meio do semestre e nos comunicamos com nossos professores por meio do ambiente virtual de ensino: é quase um blog no qual eles nos mandam mensagens com instruções de atividades para fazermos em casa e publicam alguns materiais.

Não demora muito e quando as aulas voltam, precisamos ir para a escola nas manhãs de sábado para repor aula. Também perdemos alguns dias das férias de julho.

A manhã de sábado ensolarado e Verena, a professora mais velha de nossa escola, está sentada na mesa de uma sala que não é a de nossa turma. Ela explica a diferença entre Latitude e Longitude. Fala de Norte, Sul, Leste, Oeste e nos ensina um macete para lembrar em qual lado do mapa os pontos cardeais devem ficar: “Orlando Longo”.

Saboneteiras contendo álcool em gel em toda a extensão do corredor da escola. Centenas de crianças lambuzando suas mãos com uma gosma transparente de odor nauseabundo. Eu tenho nojo de álcool em gel — até a maneira como as pessoas pronunciam o nome do produto me dá vontade de gorfar:

- Alquingél

“Tá, pode até matar o vírus. Mas a sua mão ainda tá suja”, eu penso. “Tem vírus morto na sua mão”. E opto por lavar minhas as minhas com sabonete e secá-las com papel.

Estamos aprendendo as propriedades da água no laboratório da escola. Somos desafiados a transportar a água de uma cuba para a outra usando um cano solto. De cara, sabemos que precisamos nos valer do princípio dos vasos comunicantes, mas nos parece impossível fazer isso sem que a água saia de uma cuba para a outra por baixo.

Minhas amigas tentam a todo custo fazer o transporte do líquido. Reparo que ele está ficando turvo: as mãos besuntadas de alquingél transportam o produto viscoso para a cuba, dissolvendo-o na água.

- Você quer tentar, Pedro? — elas me perguntam e me estendem os materiais.

- Não. Tô bem. Valeu.

O maior legado dessa gripe foi o alquingél que rapidamente ganhou versões com aromas diversos. É difícil quando vou almoçar com alguém e a pessoa tira um desses frascos de plástico da bolsa: o cheiro da lavanda se mistura com o cheiro da meleca e minha garganta dá um espasmo violento.

A casa da minha madrinha, Maria José. O joguinho virtual Club Penguin virou febre entre as crianças. Basicamente, você cria um avatar, um pinguim, para explorar uma ilha no meio do oceano onde outros pinguins vivem. Eu e minha prima, Marília, passamos a tarde jogando e decidimos criar avatares para nossas mães. Minha madrinha sugere como nome do pinguim dela: “H1N1” e ri. Tentamos, mas o nome já foi pego por outro usuário.

A infecção é causada pelo vírus H1N1. Teve seu início em março de 2009 no México — de lá, subiu até os Estados Unidos e Canadá, cruzou o oceano Atlântico e foi parar na Europa, logo em seguida na Oceania. Uma década depois, nos esquecemos dessa pandemia. Tempo suficiente para uma nova começar.

Assim que a Covid-19 aportou no Brasil me recordei da pandemia de Gripe A. Imediatamente senti o cheiro nauseante do alquingél, mas dessa vez me acalmei. Passaríamos apenas alguns dias em casa (duas semanas no máximo) e muito em breve retornaríamos a frequentar o campus da faculdade — provavelmente iríamos ter de repor algumas aulas no sábado de manhã. Seria rápido. Esqueceríamos uns dois anos depois.

A quarentena ultrapassou seus quarenta dias, previstos por definição. As aulas foram ministradas remotamente por videochamada durante quase dois anos. Em um encontro da disciplina de História do Jornalismo, o professor, estudioso dos movimentos de contracultura das décadas de 1960 e 1970, afirmou que uma pandemia de magnitude similar à da Covid-19 só tinha acontecido no início do século 20: a Gripe Espanhola.

Comparado ao Sars-Cov-2, o H1N1 talvez fosse só uma “gripezinha”. Mas somente um heterossexual para esquecer a pandemia do HIV e o holocausto causado pela AIDS na década de 1980 — década na qual ele viveu. Não me surpreendeu. Anos antes, havia assistido à disciplina “Comunicação Comparada”, na qual este mesmo professor examina minuciosamente os movimentos de contracultura — ele falou apenas uma vez sobre homossexuais naquela disciplina. Ao explicar como a utopia hippie se desfez, como “o sonho morreu”, ele se demorou discursando sobre a morte de John Lennon e adicionou: “E nos anos 1980 também teve a AIDS”.

Troca de slide.

NOTA: Este texto foi escrito para a oficina “A Memória como Matéria Prima da Literatura”, ministrada por Ingrid Fagundez na Escrevedeira; e também para a disciplina Jornalismo Especializado, ministrada por Sérgio Rizzo no bacharelado em Jornalismo da FAAP.

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pedro a duArte

Jornalista e Escritor // "Para além do que vivemos e acreditamos, nossas vidas se tornam as estórias que contamos" (Lynn Ahrens)