Análise

O Beijo na Capa

Uma análise do filme O Beijo no Asfalto (1981) e sobre como o Jornalismo lida com a homoafetividade

pedro a duArte
pedro a duArte

--

Pôster do filme “O Beijo no Asfalto” (1981). Foto: Reprodução.

O Beijo no Asfalto (1981) é um filme brasileiro dirigido por Bruno Barreto que adapta a peça de mesmo nome escrita por Nelson Rodrigues (1912–1980) e publicada em 1960. O texto original foi encomendado por uma jovem Fernanda Montenegro para a companhia A Sociedade Teatro dos Sete. Conta a história de Arandir (no filme, interpretado por Ney Latorraca) que vê sua vida e a de sua esposa, Selminha (Christiane Torloni), revirada do avesso após ele ter beijado um homem atropelado pois o fato foi divulgado nos jornais de forma sensacionalista.

A peça foi adaptada ao cinema três vezes. A primeira em 1964 foi intitulada simplesmente O Beijo, dirigida por Flávio Tambellini; e a última em 2018 dirigida por Murilo Benício. O presente texto irá analisar a segunda versão para o cinema, focando na conduta e na caracterização de um dos personagens mais interessantes da história: o jornalista responsável por escrever a matéria sobre o beijo. Se o leitor permitir certo anacronismo, podemos analisar as ações de Amado sob o crivo do Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros, em vigor desde 1987 e atualizado em 2007 pela Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ), entidade brasileira que representa a categoria no país.

Após um prólogo mostrando o resultado do acidente, o filme abre a história da mesma maneira que a peça. O repórter Amado Pinheiro (interpretado por Daniel Filho) visita o delegado Cunha (Oswaldo Loureiro) em sua sala na delegacia. Enquanto testemunha ocular do ocorrido, Amado conta como a cena do beijo aconteceu: um rapaz, que estava ao seu lado na calçada, caiu na rua e um ônibus que passava rente ao meio-fio o atropelou; ele então vê um outro rapaz, Arandir, se aproximar da vítima e beijá-la; pouco tempo depois, a vítima faleceu.

O repórter Amado Ribeiro interpretado por Daniel Filho. Foto: Reprodução/IMDb.

Amado explica que irá vender jornal pra burro com essa história e propõe a Cunha unirem-se para investigar o caso. A proposta do jornalista não vem sem segundas intenções: anteriormente, ele havia acusado o delegado de chutar a barriga de uma grávida levando-a a sofrer um aborto. O delegado está furioso com Amado e diz ser mentira: ele havia dado apenas um tapa. O caso do beijo poderia ser a reabilitação de Cunha pois o escândalo tiraria o policial dos holofotes.

Amado diz para o delegado: “Quando eu vi o rapaz dar o beijo. Homem beijando homem. No asfalto. Gente assim. Me deu um troço, uma ideia genial. De repente pensei, tem coisa atrás disso!” É interessante notar como o olhar jornalístico é usado aqui não em benefício do bem-público, mas em benefício do próprio repórter (em busca de um grande furo) e de limpar o nome do delegado. Se Amado estivesse interessado no bem-público, a história seria outra: a investigação se voltaria ao acidente, poderia ser apurado o treinamento dos motoristas de ônibus no Rio de Janeiro, investigar as condições que levaram ao acidente como forma de evitar outros.

O interrogatório. Da esquerda para a direita: Oswaldo Loureiro no papel do delegado Cunha; Ney Latorraca como Arandir; e Daniel FIlho interpretando o repórter Amado Ribeiro. Foto: Reprodução/IMDb.

Cunha aceita a proposta e a narrativa irá nos mostrar a maneira como Amado manipula a história a seu favor, chegando a interferir diversas vezes na investigação policial com a ajuda do delegado. A primeira interferência está em sua participação nos interrogatórios. O filme demonstra essas maquinações do repórter por meio de mudanças em seu figurino: nesta primeira cena ele veste calças e uma camisa rosa de mangas curtas — o esperado para um repórter de campo, porém se comparamos suas vestimentas com a de outros personagens masculinos, ele parece mais desleixado.

O Código de Ética estabelece que “a produção e a divulgação da informação devem se pautar pela veracidade dos fatos e ter por finalidade o interesse público” (Art. 2º, inciso II). Já de saída as ações de Amado contradizem o que se espera de um jornalista: ele age por interesses próprios. Ao unir-se com Cunha, o repórter entra em contradição com o Artigo 6º, inciso VII que estabelece ser dever do jornalista: “combater e denunciar todas as formas de corrupção, em especial quando exercidas com o objetivo de controlar a informação”.

No dia seguinte o beijo se torna um escândalo. O caso sai na capa do jornal Última Hora com a manchete “O Beijo no Asfalto”. Os dizeres “não foi o primeiro beijo, nem foi a primeira vez”, encerram a reportagem, já denotando as manipulações de Amado pois Arandir jamais confessou conhecer a vítima.

Aqui vale um adendo: o jornal Última Hora não é fictício. Ele foi fundado em junho de 1951 por Samuel Wainer (1912–1980), jornalista e empresário russo-brasileiro. Nelson Rodrigues trabalhou neste jornal onde começou a escrever sua famosa série de contos A vida como ela é. O jornal decretou falência em 1991.

Quando Arandir volta da delegacia após prestar depoimento, Selminha acredita no marido e enxerga o beijo como um gesto de empatia e solidariedade. Porém, quando a notícia se torna o grande assunto da cidade, ela prefere acreditar que o beijo nunca ocorreu em uma tentativa de defender a honra do marido.

Como consequência da repercussão, o casal começa a receber trotes constantes, tem sua casa pixada e sua vida esmiuçada pela fofoqueira da Vila onde vivem. Arandir pede demissão de seu emprego por não suportar os colegas fazendo piadas de mal gosto. Em todas essas cenas a presença física do jornal é constante, demonstrando como a história imbricou-se na mente da população, as mentiras de Amado se tornaram verdade. Por causa disso, o repórter entra novamente em contradição com o Artigo 6º que afirma ser dever do jornalista “respeitar o direito à intimidade, à privacidade, à honra e à imagem do cidadão” (inciso VIII).

Quando encontramos Amado no dia seguinte ele está em busca de sua suíte, ou seja, a história que dará continuidade ao caso do beijo. Ele vai ao cemitério onde o rapaz atropelado é velado e manda chamar a viúva. Quando ela pergunta se eles são da polícia, o repórter responde “Polícia e imprensa”. Seu figurino, agora, assemelha-se ao de um policial: veste calça e camisa azuis, seu rosto escondido por óculos escuros e seu cabelo penteado para trás.

Ele afirma para a viúva: “Tenho informações sobre você. Tenho de fonte limpa, o que corre por aí”. Dizer que “corre por aí” implica que a informação obtida ainda está sob a forma de boatos não confirmados ou desmentidos e, portanto, não pode ser vistos como vinda de uma fonte limpa. No entanto, a apuração já não importa mais para Amado: ele pressiona a viúva para mentir e declarar que o falecido e Arandir já tiveram encontros íntimos em sua casa. Ele chega a levantar sua voz com a moça e até manda que o caixão seja fechado sem a presença dela.

Aqui, Amado volta a cair em contradição ao inciso II do Artigo 2º. Ao fazer a viúva mentir, ele fabrica uma desinformação. Sua apuração não é pautada pela veracidade dos fatos. As mesmas ações também o colocam em contradição com o Artigo 4º: “O compromisso fundamental do jornalista é com a verdade no relato dos fatos, razão pela qual deve pautar seu trabalho pela precisa apuração e pela sua correta divulgação”. Como já foi apontado, a divulgação se mostra errada desde a primeira matéria escrita pelo repórter.

Amado usa a viúva não apenas para escrever a suíte, mas também ao interrogar Selminha. Ao invés de levá-la para a delegacia, ele e Cunha a questionam em uma casa abandonada, pertencente a um amigo do repórter. Eles são verbalmente abusivos com Selminha, desesperada por defender a honra do marido. A viúva é trazida ao local e mente para Selminha que Arandir e o falecido tinham um caso. Ainda descrente, Selminha reage e, como punição, Amado a assedia sexualmente. Nesta cena e até o final do filme, o repórter assume uma vestimenta de malandro: camisa estampada apenas com os dois últimos botões de baixo fechados, mostrando todo seu peitoral e uma corrente brilhante.

Desta vez, Cunha quebra com outro inciso do Artigo 6º que diz que todo jornalista deve “opor-se ao arbítrio, ao autoritarismo e à opressão, bem como defender os princípios expressos na Declaração Universal dos Direitos Humanos” (inciso I). Sua conduta para com Selminha e a viúva se mostra extremamente opressora e machista.

Como um contraponto às ações de Amado Pinheiro, Bruno Barreto adiciona uma cena extra ao filme. Arandir e Dália, irmã mais nova de Selminha, assistem a uma vídeo-reportagem na televisão: a repórter afirma que o Última Hora usou uma demonstração de carinho, amor e bondade para criar um escândalo, que se torna “catarse para as fantasias” da sociedade. Com seriedade, a repórter entrevista diversas pessoas na rua perguntando se elas teriam beijado também ou não — há quem diga que foi um crime, há quem não veja problema algum no beijo.

Ney Latorraca interpretando Arandir. Foto: Reprodução/IMDb.

Mas o estrago está feito. A pessoa que mais parece afetada por todo esse sensacionalismo é Aprígio (Tarcísio Meira, 1935–2021), sogro de Arandir. Mesmo sendo uma testemunha ocular do caso, Aprígio acredita cada vez mais no que o jornal diz, chegando até a repetir frases feitas que leu na notícia. Ele começa a duvidar de sua própria visão e vai à procura de Amado na tentativa de comprovar a veracidade do que foi divulgado pelo periódico.

Aprígio encontra Amado saindo da redação do Última Hora. Há pouco tempo antes, o repórter viu sua suíte estampando a capa do dia seguinte com os dizeres “O Beijo é Crime”. Vale a pena dizer que a homossexualidade (assim como a bissexualidade e a transgeneridade), em si, nunca de fato foi prevista como um crime pela lei brasileira — na época homo/bissexuais e travestis eram presos por “vadiagem”. O repórter sai do escritório se gabando para seus colegas: “Eu me sinto uma celebridade. Pederastia vende jornal pra burro!”. Ele afirma que nesta nova edição foram rodados 300 mil exemplares.

Em sua euforia, uma fala chama a atenção de ouvidos mais atentos. Amado diz “Eu garanto que aquele jornal gay. O das bixas. Qual é o nome? Ele vai fazer do Arandir um herói! Mas vocês escrevam o que eu digo: ele é um assassino, com todas as letras”. Aqui, parece que Bruno Barreto adaptou a narrativa para o ano em que o filme foi rodado, 1980, período no qual circulava em todas as bancas do país o jornal Lampião da Esquina.

Fundado em abril de 1978, o Lampião foi o primeiro jornal feito por homossexuais e para homossexuais a ser vendido comercialmente e em escala nacional. O periódico mensal ficou conhecido por apresentar contos, ensaios e notícias do movimento LGBT nacional e internacional fazendo uso de uma linguagem desmunhecada e desabusada proveniente do que era chamado de “gueto homossexual”.

Capa do número zero do jornal “Lampião da Esquina”. Como manchete principal, a notícia de que Celso Curi era processado pela Ditadura. Foto: Reprodução / Acervo do Centro de Documentação Prof. Dr. Luiz Mott — Grupo Dignidade, Curitiba.

De fato, seria muito interessante ver como o Lampião reagiria aos disparates de Amado Pinheiro e a maneira como ele coloca o beijo (e não o atropelamento) como um crime. Porém, muito mais interessante seria saber como a notícia repercutiu dentro da redação do próprio Última Hora e se o jornal teria veiculado outras histórias que oferecessem algum contraponto. Afinal, é neste mesmo periódico que o editor Giba Um (diretor do jornal após a saída de Wainer) oferece, em fevereiro de 1976, uma coluna ao jornalista abertamente gay Celso Curi. Chamada “Coluna do Meio”, o espaço buscava trazer temas pertinentes à comunidade gay de maneira bem humorada. Com a repercussão da coluna o jornal recebeu diversas cartas anônimas criticando a coluna e pedindo seu fim — uma das mensagens, escrita com sangue, ameaçava Celso de morte.

Celso provavelmente não teria comentado a história do beijo em sua coluna, afinal ela foi descontinuada por escolha própria do jornalista em 1979 após ser processada pela Ditadura Militar (1964–1980) por meio da Lei de Imprensa. Resta a pergunta: o mesmo jornal que criou tal coluna publicaria a história do beijo de maneira tão escandalosa, após esta experiência?

O Código de Ética também prevê como a imprensa deve lidar com a homo/bissexualidade (e também a transgeneridade). Ele diz ser dever do jornalista “defender os direitos do cidadão, contribuindo para a promoção das garantias individuais e coletivas, em especial as das crianças, dos adolescentes, das mulheres, dos idosos, dos negros e das minorias” (art. 6º, XI). Neste caso, a questão da homo/bissexualidade aparece sob o guarda-chuva das “minorias”, mas se o leitor procura por algo mais específico encontrará logo em seguida no inciso XIV do mesmo artigo: é dever do jornalista “combater a prática de discriminação por motivos sociais, econômicos, políticos, religiosos, de gênero, raciais, de orientação sexual, condição física ou mental, ou de qualquer outra natureza”.

Vê-se então que em seu trabalho os jornalistas devem aliar-se às chamadas “minorias”, sendo possível inferir que a veiculação de matérias LGBTfóbicas ou que incitem a LGBTfobia dos leitores não deveria ocorrer em hipótese alguma. E no caso específico dessa história, desde o princípio Amado faz justamente o oposto: usa um beijo para despertar a homofobia da sociedade como uma maneira de vender mais jornais.

Aprígio leva Amado para jantar em uma tentativa de descobrir a verdade por trás de toda a história. Na peça, essa cena se passa na casa de Amado, um espaço decadente, e o repórter está completamente embriagado. Esta é talvez uma das cenas mais interessantes da história porque, após ser questionado por Aprígio, Amado confessa já não saber mais o que aconteceu, não sabe se Arandir e o falecido eram amantes e se o rapaz empurrou a vítima para que fosse atropelada. O repórter não tem medo de afirmar que tudo foi feito para vender mais exemplares do jornal. Aqui, vemos a face mais grosseira de Amado: na peça, completamente degradante; no filme, ainda sustentando uma pose de malandro. Esta é a última cena na qual vemos o repórter.

Como o autor e jornalista Flávio Aguiar explica no posfácio da edição realizada pela Nova Fronteira de Boca de Ouro, peça de Nelson Rodrigues escrita em 1959, o papel da imprensa aparece de forma ambígua na dramaturgia do carioca. Em Boca de Ouro também testemunhamos como a mídia ergue e destrói heróis. Flávio aponta que nesta época os grandes centros urbanos viam sua imprensa passar por um surto de transformações: novos jornais surgiam constantemente e, como maneira de chamar a atenção dos leitores, assumiam um tom popularesco, fazendo uso do sensacionalismo e de manchetes espalhafatosas. Como escreve o jornalista: “As tiragens desses jornais explodiam da noite para o dia e ameaçavam o primado das empresas jornalísticas tradicionais e conservadoras”. Nelson, por sua vez, desaprovava esse surto e percebia que o sensacionalismo criava e desafazia mitos da noite para o dia.

É por isso que Nelson criou o personagem de Amado dessa forma. Em O Beijo no Asfalto somos levados a questionar a conduta do jornalista conforme assistimos ao resultado trágico de uma história reportada enviesadamente.

TRAZENDO O TEMA PARA A REALIDADE

Capa sensacionalista da Veja sobre as complicações de saúde do cantor Cazuza. Foto: Reprodução/Veja.

Há vários casos em que o jornalismo fez uso de capas sensacionalistas que apelavam para sentimentos homofóbicos. Um exemplo muito famoso é o do cantor brasileiro Cazuza. Após ter sua saúde comprometida devido a complicações com a AIDS, a revista Veja publicou em 26 de abril de 1989 uma capa veiculando uma matéria especial sobre o compositor com o título “Cazuza: uma vítima da AIDS agoniza em praça pública” e trazendo uma fotografia do cantor que estava pesando cerca de 40 quilos na época.

Mas se engana quem pensa que apenas jornais sensacionalistas fazem uso de tal recurso para vender exemplares. Até mesmo jornais e revistas sérios acabam caindo nessa tentação. A revista Piauí é um exemplo marcante por ter publicado diversas vezes capas que mostram um beijo entre dois homens da política — a primeira em agosto de 2013, a segunda em janeiro de 2016 e a terceira em maio de 2019. Estas capas são o que chamamos de charges: uma ilustração humorística que comenta um tema atual, muitas vezes criticando-o negativamente. Este é o caso dessas capas, o “humor” presente nelas reside no fato de termos dois homens se beijando como uma maneira de apontar que seu alinhamento ideológico chega a ser carnal.

As capas da Piauí que apresentam um beijo entre dois homens da política e suas respectivas datas de publicação. Capas: Reprodução/Piauí.

Por mais que o ilustrador e os editores não o sejam, piadas como essa reiteram uma ação homofóbica: colocar uma experiência tida como homo/biafetiva como algo risível, motivo de chacota e piada. Mais do que isso: motivo de críticas negativas, pois o beijo é retratado como um conchavo desprezível. Há quem possa rebater este argumento dizendo que, na verdade, a ilustração tem a intenção de ofender os senhores representados assim como a seus seguidores. Mas isso não melhora a situação: neste caso, a charge coloca uma experiência homo/biafetiva como motivo de ofensa. Pior, assim como “O Beijo no Asfalto”, desperta em seus espectadores sua homofobia internalizada.

É importante dizer que as capas da Piauí são inspiradas em um mural realizado por Dmitri Vubrel no muro de Berlim. A obra tem como título Deus, Ajuda-me a Sobreviver a Este Amor Mortal e, por sua vez, é uma réplica de uma fotografia que registra um abraço em que o estadista soviético Leonid Brezhnev e o então presidente da Alemanha Oriental Erich Hockner se beijam. Esta ação é um hábito cultural, conhecido como um Beijo Fraternal Socialista, forma especial de saudação entre estadistas de países comunistas, um ato que demonstra uma ligação entre os estados socialistas (normalmente os beijos eram trocados nas bochechas, apenas em casos raros eles eram trocados na boca).

À esquerda, fotografia realizada por Reggis Bossu que captura o momento no qual os estadistas se beijam. À direita, o mural de Dmitri Vubrel em Berlim.

Apesar das capas serem inspiradas neste mural, as pessoas que veem a Piauí nas bancas muitas vezes não sabem disso — o contexto das capas se perde, ficando apenas a piadinha homofóbica. Mesmo que o leitor tenha essa referência, não é ela que gera o humor da charge porque a “punchline” é a ação (o beijo) vista com maus-olhos, ou seja, ainda uma piada homofóbica.

Como contraponto podemos trazer outra capa famosa. Em 7 de setembro de 2019, o jornal Folha de S. Paulo estampa o beijo entre os heróis Hulkling e Wiccano — a cena foi retirada da graphic novel da Marvel intitulada Vingadores, a cruzada das crianças. O que motivou esta capa foi o fato do então prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, ter tentado censurar a Bienal do Livro onde o quadrinho era vendido. Diversos portais de notícias fizeram a mesma coisa que a Folha.

Capa da edição de 7 de setembro de 2019 do jornal Folha de S. Paulo que retrata o beijo censurado por Crivella. Foto: Reprodução/Folha.

Se por um lado as capas da Piauí utilizam um beijo entre dois homens como motivo de riso, de crítica e de ofensa, por outro lado a capa da Folha mostra que não há nada demais em um beijo entre dois homens, que não há motivos para reprimir esta ação. Esta capa da Folha foi um ato de contestação às autoridades, um grito contra a censura. Dessa forma, podemos ver que o problema não reside naquilo que é mostrado, mas como é mostrado: com qual propósito e intenção.

NOTA: Esta análise foi produzida como trabalho final da disciplina Gêneros e Conceitos do Jornalismo, ministrada por Sérgio Rizzo no bacharelado em Jornalismo da Faculdade Armando Álvares Penteado (FAAP).

Serviço

O filme O Beijo no Asfalto, de Bruno Barreto (Brasil, 1981), atualmente está disponível no catálogo do serviço de streaming Amazon Prime Video.

--

--

pedro a duArte
pedro a duArte

Jornalista e Escritor // "Para além do que vivemos e acreditamos, nossas vidas se tornam as estórias que contamos" (Lynn Ahrens)