Análise

Análise do filme O homem que matou o facínora

pedro a duArte
pedro a duArte
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6 min readMay 10, 2020

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The Man who shot Liberty Valence (no brasil, “O Homem que matou o Facínora”) é um filme estadunidense de 1962, dirigido por John Ford. Conta a história de Ranse Stoddard (James Steward), um viajante que, após ser emboscado por Liberty Valence (Lee Marvin) e jurar prendê-lo, encontra refúgio na pacata cidade de Shinbone, por ser um dos únicos homens com formação acadêmica no local, ele acaba ganhando notoriedade e a simpatia dos habitantes após abrir uma escola.

O filme é narrado através do artificio de moldura: ele se inicia com o retorno de Rance na cidade para o funeral de um antigo amigo, Tom Doniphon (John Wayne). Ele é procurado pelo novo editor do jornal Shinbone Star para uma entrevista, que ele aceita. Quando os jornalistas perguntam qual sua relação com o falecido, Rance reconta as histórias de seu passado.

A forma narrativa se assemelha ao Tratado da Tolerância, de Voltaire, que promove uma reconstrução dos fatos do caso de Jean Calas, injustamente acusado e executado em 1762, de forma a tratar sobre o tema da tolerância, aqui, entre os povos cristãos. Este ensaio é considerado a inauguração do jornalismo investigativo ao mesmo tempo em que discute os limites do fanatismo. O tempo todo o autor clama que sejam usados fatos em vez de convicções sem fundamentos.

Os personagens que simbolizam esta dinâmica não poderiam deixar de ser, é claro, Liberty Valence, Rance e o editor (e único repórter) do jornal, Dutton Peabody (Edmond O’Brien). Liberty irá representar a intolerância e o autoritarismo: ele faz uso de sua força e destreza com armas para praticar terrorismo com uma pacata cidade (tão pacata que não há um outro problema na cidade além das ações do facínora). Enquanto Rance, por outro lado, irá se recusar a entrar no jogo de poder de Liberty e irá optar pelo caminho da tolerância e pelo caminho da Lei. Assim, quando descobre que os cidadãos da cidade de Shinbone não sabem ler, ele decide abrir uma escola para que todos possam ter instrução.

Mas é Peabody o lado mais interessante desta dinâmica. O tempo todo ele arrisca sua vida ao publicar matérias cada vez mais acusatórias a Liberty, buscando sempre trazer a Verdade e os Fatos para as páginas do jornal. É Peabody quem convida Rance a abrir seu escritório de advocacia e uma escola em uma das salas da Redação do jornal a partir do momento em que ele percebe que Rance também quer fazer o que é certo. Quando a cidade o elege como deputado para defender seus interesses, ele se mostra em conflito com a proposição: em um discurso ele diz que seu papel enquanto jornalista não é estar ao lado da política, que finge estar ao lado do povo mas está ao lado de si mesma, mas seu papel é ser a voz da consciência do povo, de fato estar do lado deles.

Dessa forma, Peabody representaria os princípios do Jornalismo: um compromisso de fidelidade com os fatos, assim como um compromisso com o interesse público. Como mostrado no filme, é uma profissão de risco porque a Verdade, no jornalismo, é um compromisso com a realidade, então, a profissão inevitavelmente irá bater contra o autoritarismo. Assim, se Liberty comete um crime é dever de Peabody reporta-lo, apesar das constantes ameaças que o gansgter faz ao jornalista. É por Rance entender que sem uma imprensa livre o povo não será livre que ele finalmente decide aceitar o duelo com o facínora após ver o gangster destruir a redação do jornal (quebrando a prensa) e quase matar o jornalista.

É curioso, portanto, que a frase mais polêmica do filme (pelo menos entre os jornalistas) tenha se tornado uma frase que o novo editor do jornal Shinbone Star diz ao descobrir que não foi Rance quem matou Liberty e sim Doniphont e, por isso, decide não escrever aquela história: “Estamos no Oeste, quando a lenda se torna fato, você a publica”. Os jornalistas poderiam ter ficado chateados com a representação de Peabody como um beberrão, mas optaram por focar suas críticas, nesta frase.

A polêmica, aqui, viria do fato de que este pensamento seria antiético no jornalismo: afinal os fatos são na verdade algo concreto e possível de ser comprovados, uma verdade que pressupõe fidelidade. Mas é preciso colocar o filme em seu contexto: temos diante de nós um faroeste, um gênero cinematográfico onde normalmente os roteiristas e diretores usavam a época da conquista do oeste como uma espécie de microcosmo dos Estados Unidos para poder fazer uma crítica a política da época. Então a frase reflete, na verdade, uma ética do Oeste: onde não importa o que realmente aconteceu, importa o que as pessoas acham que aconteceu — naquele lugar o que vale é a imagem que foi colocada no imaginário popular. Ninguém na cidade jamais acreditaria que seu herói, Rance Stoddart, que os livrou do facínora e agora luta por eles em Washington, na verdade não realizou um de seus maiores feitos. Assim a frase é mais uma crítica ao como os políticos ascendem ao poder do que de fato a ética de conduta dos jornalistas: os políticos não são eleitos pelo que eles de fato fazem ou fizeram, mas pela imagem que se criou ao redor deles (cada dia mais isto fica em evidência na política brasileira e mundial). É interessante reparar também que toda a história é contada em primeira pessoa por Rance e, se Machado de Assis nos ensinou alguma coisa com Dom Casmurro é que, narradores em primeira pessoa não são confiáveis, ou seja: até que ponto o que Rance conta para os editores do novo Shinbone Star é verdade, até que ponto o que ele diz não foi retocado para que ele saísse como uma pessoa sempre justa e correta? Afinal, as únicas pessoas que sobraram para contar a história são ele, sua esposa Hallie e Pompey, amigo de Doniphon.

E o que dizer do retrato de Peabody como um bêbado? Comparando-o com o novo editor do jornal (presente nas cenas do retorno de Rance), vemos que o novo editor se veste de maneira muito elegante, ele é comedido e está sempre sóbrio, o completo oposto de Peabody. Mas é Peabody (o bêbado mau-vestido) quem de fato conta a verdade, quem de fato luta ativamente contra o autoritarismo através de sua profissão e se recusa a fazer parte do jogo sujo político. Esta construção de Peabody, assim, se assemelha aos bufões de Shakespeare que, justamente por serem os bufões, os bobos-da-corte, tem a licença de falar o que bem entenderem. Mas então os jornalistas seriam bufões? Se lembrar-nos novamente que o faroeste é uma crítica a sociedade estadunidense da época, percebemos que Peabody na verdade representa a maneira como alguns setores da sociedade viam (e ainda veem) o papel do jornalista: ou tais setores descreditam os profissionais, ou o povo não tem condições de ter acesso à informação — Peabody bebe afinal ele não tem interlocutores, a população de Shinbone, mal sabe ler (eles fazem parte do grupo que não tem acesso à informação).

Assim, qual é o papel do jornalista? Este filme, na verdade, não nos oferece resposta. Porém, da minha parte, eu prefiro estar com Peabody que, apesar das adversidades, procura sempre estar em dia com os fatos e estar sempre à serviço do povo (por mais que este nem sempre faça uso de seus serviços).

NOTA: Esta análise foi feita para a disciplina História do Jornalismo do Bacharelado em Jornalismo da Faculdade Armando Alvares Penteado (FAAP)

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pedro a duArte
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Jornalista e Escritor // "Para além do que vivemos e acreditamos, nossas vidas se tornam as estórias que contamos" (Lynn Ahrens)