Crônica

Andavam de mãos dadas, cidade, amiga e ele

Uma crônica sobre amor

pedro a duArte
Published in
4 min readAug 27, 2021

--

Entre o mar de gente voltando do trabalho que inundava a estação Barra Funda, ele a encontrou nas catracas. Se abraçaram. Ele se ofereceu para levar a mala de mão dela — “Fez boa viagem?” — e caminharam até o apartamento dele.

Ele adorava quando ela vinha visitar. Uma vez por semestre ela ia a São Paulo para passarem o final de semana juntos turistando por aí. No sábado, tinham combinado de passear pelo Ibira, jantariam na Castro Burguer e, depois, assistiriam a uma peça no Sesc Vila Mariana — o espetáculo era o motivo pelo qual ele havia feito a garota sair da cidade onde nasceram, pegar um fretado e vir para a capital. Ainda não tinham certeza do que fariam no domingo, quem sabe aproveitariam a Paulista aberta, mas aquele rolê já era meio batido; se bem que o MASP estava com uma exposição interessante…

Agora, neste fim de tarde de sexta-feira precisavam decidir onde iriam jantar. Era cedo, quase seis da tarde, mas a viagem tinha deixado a garota com fome. E porque estavam indecisos sobre o que gostariam de comer, decidiram ir ao Pátio Higienópolis; improvisariam com a relativa variedade da praça de alimentação. Então começaram a caminhada de trinta minutos subindo a Conselheiro Brotero — a companhia fazia com que o tempo voasse para os dois e tornava a escalada imperceptível.

Durante o jantar se atualizaram sobre o que estava acontecendo na vida de cada um. Ela contou sobre sua namorada, ele mencionou os rapazes que conheceu no Tinder e cuja troca de mensagens dificilmente resultaria em um encontro. Em determinado momento, ela comentou sobre ter lido um ensaio de Walter Benjamin para uma disciplina da faculdade de Letras e agora estava fascinada pelo ensaísta. Ele respondeu dizendo que já teve de ler A Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade Técnica para umas três disciplinas diferentes em seu curso de Cinema. Combinaram que um dia iriam reproduzir a fotografia na qual Benjamin está jogando xadrez com Brecht: ela posaria como o filósofo, ele como o dramaturgo — ele havia se apaixonado pelas peças do velho alemão depois de ter assistido a montagem de A Vida de Galileu, interpretado por Denise Fraga.

Como a dupla já estava no shopping, resolveram assistir algum filme no cinema antes de voltarem para o apartamento. Ela insistiu em ver um de terror; ele decidiu ir em frente com a ideia, apesar de ser medroso. No fim, o que deveria ser do gênero do horror apresentou-se como um filme de comédia: chamava-se A Morte te dá Parabéns, sobre uma patricinha universitária que era assassinada na noite de seu aniversário e, no instante em que falecia, acordava e revivia aquele mesmo dia até ser morta novamente. Conforme a história avançava a patricinha aprendia a se tornar uma pessoa melhor — o filme terminava esperançoso, com muito humor.

Ainda era cedo, não deveria ser mais que nove horas da noite, então decidiram retornar a pé do shopping, ao invés de pedir um Uber — o bairro ainda estava tranquilo naquele horário. Eles não sabiam dizer exatamente o que o blockbuster tinha de tão especial para ter lhes deixado assim, mas sentiam-se revigorados ao saírem do cinema. Caminhavam enquanto conversavam animadamente sobre o filme. A luz amarela dos postes refletia no verde das árvores, criando um brilho particular — em São Paulo não é possível ver estrelas no céu noturno, porém o bairro iluminava-se com as diversas janelas acesas. Nos apartamentos, casais namoravam, crianças brincavam com seus irmãos e irmãs, jovens davam risada ao lado de seus amigos — gente viva brilhando estrelas na noite amena, recheada pela expectativa festiva de um bom final de semana.

Ele estendeu seu braço horizontalmente na altura de sua cintura, com a palma da mão virada para cima. Ela entendeu e segurou sua mão. Andavam de mãos dadas — neste momento, eu juro, eles foram infinitos.

Iam todos os dois, assim ao léu. Riam, alegravam-se, sem razão. Se a mãe dele estivesse assistindo a essa cena imediatamente se lembraria daquele dia, dez anos atrás, quando os viu saindo pelo portão da escola depois da aula conversando animadamente –foi quando a mãe teve certeza que aquele par ficaria junto para sempre.

Ele esperava que sua mãe tivesse razão. Neste ano a dupla completaria uma década de amizade — a partir do ano seguinte, quando fizessem 21 anos de idade, teriam cada vez mais tempo de vida juntos do que sem se conhecer. Quando ele estava com ela, sentia que estava em seu lar. Com ela, ele se lembrava de sua essência. Também se recordava de quem foi na infância e na adolescência — ao colocar essas memórias em perspectiva, percebia o quão longe ele chegou; percebia o quão longe ela chegou.

Hoje, escrevendo sobre ela, se vendo nos olhos dela, sabe que o que tinha de ser se deu. Porque era ela, porque era eu.

NOTA: Esta crônica foi produzida para a oficina “Escrever se aprende escrevendo”, ministrada por Luana Chnaiderman na Escrevedeira

--

--

pedro a duArte
pedro a duArte

Jornalista e Escritor // "Para além do que vivemos e acreditamos, nossas vidas se tornam as estórias que contamos" (Lynn Ahrens)