Crônica

Cores & Formas

Uma crônica impressionista

pedro a duArte
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5 min readApr 24, 2022

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Tentar descrever um pôr do sol é igual tentar fazer uma fotografia dele. O que seus olhos veem não imprime tão bem no papel. As palavras se tornam borrões elípticos de rosa-choque, misturados com laranja-coral e azul-celeste. Pompons brancos manchados de tinta holográfica são salpicados na folha e, em seu centro, um círculo vermelho-flamejante — não podemos olhar diretamente pra ela por muito tempo, isso nos cegaria.

Um pôr do sol é tão mais bonito, quanto melhor for a companhia de quem o contempla. E ali, do topo do observatório do parque, éramos nós três e a brisa fria. Era domingo e era o equinócio de outono.

A dupla teve a ideia praticar andar de skate nas ruas planas retangulares cinza-petróleo da parte baixa do parque — um hobby pelo qual se interessaram após ver a Fadinha nas Olimpíadas e que começaram a praticar durante a Abertura, após a segunda dose da Vacina. Por ser um viadinho pouco atlético, permaneci sentado em uma toalha de piquenique sobre a relva — me contentei em lhes assistir planando de um lado para o outro, observando as outras pessoas no parque e ouvindo música.

Coisa linda nesse mundo é sair por um segundo e te encontrar por aí. E ficar sem compromisso — pra fazer festa ou comício — com você perto de mim. ¹

Em determinado momento ela tentou me ensinar a me equilibrar na prancha. Pé esquerdo na ponta da frente apoiando firme e, ao mesmo tempo, com certa suavidade — é com a mesma força que se aplica ao segurar um passarinho em sua mão. Pé direito sempre ao lado do esquerdo, rente a prancha: o movimento é igual a andar, só que mais rápido. Quando você já pegou impulso, é só colocar o pé direito na ponta de trás da prancha e ficar meio de ladinho — essa era a parte difícil. Consegui andar alguns metros — às vezes parecia que seria catapultado para frente, mas conseguia fincar meus pés no chão antes da queda.

Talvez skate não seja para mim. Talvez eu só precise de mais tempo de voo e determinação. Afinal, fazem meses que os dois começaram a andar e só agora estão dominando a arte sutil de fazer curvas.

Quando o pôr do sol se anunciou, ele sugeriu que caminhássemos até o observatório para assistir de um ponto de vista privilegiado. Ele tem um lado meio hippie, tenho certeza que, se não tivesse mais gente ao redor, aplaudiria quando a bola vermelho-flamejante desaparecesse por trás da franja da encosta capim rosa-chá.

Caminhamos por nosso parque perfeito. Passeando ao lado da água refrescante azul-anil, sobre a grama macia verde-broto, conforme atravessamos por entre arranjos de sombras em direção às árvores verticais. Em um domingo tão comum. ²

O observatório é um grande tablado circular de concreto. Em seu centro há uma imensa placa ocre-metálico triangular — durante o dia, sua sombra cinza-opaco é capaz de mostrar o horário exato no chão. Uma fileira de discos pendurados por cabos metálicos tubulares e espichados formam pêndulos que servem para medir Dédalo sabe o quê. Por algum motivo, o arquiteto que desenhou o lugar colocou, em um dos quadrantes, um Zootropo — uma geringonça dos primeiros cinemas, consiste de um cilindro de espelhos dentro de uma cuba circular, nas bordas internas dessa cuba há uma imagem de um cavalo; quando o aparelho gira, a impressão ao olhar no espelho é que vemos o cavalo galopar. No chão de outro quadrante, pingos preto-universo formam um símbolo do infinito espichado — é a descrição da posição solar em relação a Terra quando observada na mesma hora de vários dias do ano.

Éramos nós três, as parafernálias geométricas e um vento frio. Era domingo e era o equinócio de outono — naquele dia específico do semestre teríamos um período exatamente igual de luz e outro de trevas. Ele tentou fotografar o pôr do sol com seu celular em diversas angulações, sem grande sucesso. Até que em algum momento desistiu.

Lá embaixo, crianças cor de romã entram nos carros de seus pais para voltar pra casa. O oliva-chumbo da nuvem ficando pra trás da tarde e a seda azul do papel que envolve meu chocolate. ³

Respirei o ar vespertino. Sentindo o caminho que as partículas faziam de meu nariz até os pulmões e o trajeto de volta. Ofereci o chocolate para eles. Ela adora meio-amargo, ele detesta. Os átomos todos dançam, crepúsculo. Reluz neblina.

A noite caiu. Só nossas jaquetas já não davam mais conta de segurar o frio. Foi aí que ela sugeriu de emendarmos o role indo para algum bar. Eu adicionei as condições de que fosse um espaço mais coberto (por causa do frio) e não tão cheio, para que fosse possível ouvir nossa conversa. Assim de improviso, não veio à tona em nossas mentes o nome de um bar que pudéssemos ir. Então ela nos levou para um tour gastronômico pelo nosso bairro em seu carro.

Quando viramos para sair do observatório, nos deparamos com a Lua beijando a colina. O corpo celeste se erguia grandioso diante de nós, refletindo a luz que batia em sua superfície branco-argamassa. Partimos ouvindo as músicas que tocavam na rádio.

Na cidade em que me perco. Na praça em que me resolvo, é lindo ter junto ao corpo a ternura de um corpo manso, na noite da noite escura. ¹

POETAS CITADOS NESTA CRÔNICA

¹ Trecho da canção “Coisa Mais Linda” (1968), de Gilberto Gil;

² Trecho traduzido e adaptado da canção “Sunday”, do musical Sunday in the Park with George (1984) — roteiro de James Lapine, músicas e letras de Stephen Sondheim;

³ Trecho adaptado da canção “Trem das Cores” (1982), de Caetano Veloso.

Nota: Esta crônica foi produzida para a oficina “Escrevendo o Real”, ministrada por Ingrid Fagundez na Escrevedeira.

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pedro a duArte

Jornalista e Escritor // "Para além do que vivemos e acreditamos, nossas vidas se tornam as estórias que contamos" (Lynn Ahrens)